quinta-feira, 7 de maio de 2009

Crêdito e conhecimento: um conto


Foi Karl Popper o que chegou a falar de uma espécie de decisionismo no âmbito do conhecimento científico. Que significa isto? Pois basicamente que em ausência de uma justificação última que garanta a validez do nosso conhecimento, optamos e decidimos que deve ser esse o caminho que queremos seguir porque acreditamos que é o mais viável, o mais racional e o mais prometedor. É claro que no pensamento empirista, desde David Hume, isto aparece como inevitável. Mesmo em Kant há um acto de fé gnoseológica. E isto é o que me interessa agora aqui tratar. Não podemos evitar que os nossos actos, todos eles, estejam carregados de uma vontade e uma fé ou, pelo contrário, por uma ausência de vontade ou fé: e isto dá lugar a conhecimentos e visões diferentes da realidade que não estão na fé mesma mas nas consequências desta ênfase. Quando em outro post falava de Ibn Arabi e de certos fenômenos que trascendem a nossa experiência habitual é compreensível que muitas pessoas possam pôr em dúvida o que Ibn Arabi nos transmite ainda que para isso se necessite ter uma pobre opinião do mestre murciano (teria que ser uma pessoa crédula, fantasiosa e mesmo desonesta). Mas podemos entender que seja difícil aceitar certo tipo de "fenômenos" e é, em boa medida, preférivel ser pouco crêdulo nestes âmbitos a ser crêdulo de mais. Certo cepticismo é necessário.


Mas para falar disto ocorrese-me um conto do que sempre gostei e que ficou gravado na minha memória de forma indelével desde a primeira vez que o li. Vamos lá:


O substituto.


Há muitos anos no centro do bazar da cidade de Istambul um comerciante e o seu cliente tinham uma disputa. O ambiente começou-se a caldear de jeito que, num momento dado, o lojista empurrou ao seu cliente com tão má sorte que quando foram ajudá-lo para se levantar comprovaram que estava morto. O comerciante não podia dar crêdito ao que acontecia. Tão só tinha empurrado o homem mas uma má queda e ali estava inerte e sem vida.

Uma multidão rodeava ao comerciante quando chegou o juiz. Há que ter em conta que em aquela época a lei era inflexível. Se uma vida era tirada a pena de morte era inevitável.


Conheço a lei- disse o comerciante. Sei que devo morrer mas peço-lhe ao juiz que me conceda certo tempo. Tenho três filhos menores que ficarão órfãos e devo deixar arranjados os seus assuntos.

O que me pede é impossível- replicou o juiz. Não vê qual é a gravidade da situação?. Acaba de matar um homem! Tem que responder perante a sua família. Sabe se ele tem orfãos também?

- Não foi a minha intenção mas compreendo- disse o homem. E baixou a cabeça.

- Se conseguir um substituto durante um dia que se comprometa a ser executado no caso de que não apareça, então concedo-lhe esse tempo que me pede- disse o juiz, benêvolo.

- O comerciante alçou os olhos no meio da multidão até que se pararam num homem que não chamava a atenção por nada especial. O comerciante perguntou:

- Ficarás tu?
- Sim, eu fico- disse o homem.

Houve um sentimento de consternação e incredulidade no ambiente. O próprio juiz falou:

- Percebe os termos do acordo? Se este homem não voltar será o senhor o ajusticiado?
- Compreendo perfeitamente.

Entretanto o comerciante subiu ao cavalo e perdeu-se rapidamente além da multidão. A medida que o tempo passava as conversas e as dúvidas oscilavam nervosas e tensas.

E o tempo passou como um relâmpago na noite mas o comerciante não aparecia. Chegou o momento de cumprir-se o tempo fixado e o comerciante não estava lá.

Todos olhavam com horror ao substituto quando uma nuvem de pó se vislumbrou no horizonte. Era o comerciante no seu cavalo. Um grito de assombro surgiu da multidão.

- Desculpem, mas um contratatempo de última hora impediu-me chegar antes. Aqui estou!
Todos ficaram impressionados. O juiz sentia-se agora estranho. Falou para o substituto:

- Mas conhecia este homem de algo?
- Não
- Porquê aceitou então ser substituto?
- Ele confiou em mim como á sua única e última esperança. Como poderia defraudá-lo?

O juiz gaguejou. A multidão ficou muda. Quando se repuseram do shock a família do morto solicitou a comutação da pena por uma multa, o que foi aceite pelo juiz.

Se observarmos bem esta história veremos que não há nela nada impossível mas porque nos resistimos a pensar que, depois de tudo, não seja mais que um conto? Por que nos resistimos a acreditar nela como algo que realmente aconteceu?











2 comentários:

Esdedesear disse...

Puedo creer que no sea un cuento, si. Puedo creer que sea una experiencia verdadera. Experiencia en el límite, experiencia de un día único, un único día en la vida en contacto directo con la verdad, la voluntad, el espacio ético vital, no enseñado o adquirido, sino intuído. Por qué? Quizás porque vivir sólo consista en desear, y engañar, ese día único donde la muerte próxima posible, a fecha fija, desvela todo?

José António Lozano disse...

Lo único que puedo decir es que realmente sucedió.
Creo que no debo responder a tus preguntas. Están muy bien como preguntas.
Pero este tipo de historias van conmigo y las evoco para recordarme a mi mismo.
Un beso