quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

O disfarce de Bahodine




Bahodine Naqshband foi um grande sábio de Bokhara do século XIV. Pode dizer-se que o sufismo moderno depende em boa medida do seu trabalho de síntese e de imbricação. De aí que seja conhecido como "o desenhador". Quando estava na maturidade alcançou um alto grau de consideração (cousa que não sempre tinha acontecido). Foi em aquela época que começou a oferecer certas audiências públicas onde os seus assistentes assim como alguns dos seus discípulos podiam observar o que se passava. Isto também formava parte dos ensinamentos. O comportamento exterior de Bahodine costumava ser sóbrio e cortês embora nas situações mais privadas podia ser uma pessoa bem humorada e cercana.
Um dia chegou um rico comerciante que tinha ouvido falar da reputação do sábio. Apresentou-se perante a assembleia, cumprimentou muito cortesmente a Bahodine e solicitou ser admitido no ensino como um humilde discípulo. Bahodine pediu-lhe que voltasse ao cabo de seis meses sem mais comentários. O comerciante sentiu-se um pouco desiludido mas, obviamente, não disse nada.
Durante esses seis meses Bahodine visitou a loja do comerciante fazendo-se passar por Baba Farid, um vendedor de mercadorias. Este era um dos disfarces de Bahodine, técnica utilizada desde antigo também por alguns governantes como Harum al Rachid. Em cada visita demorava-se a falar dos mais variados temas desde as qualidades dos tapetes até o tempo atmosférico.
Enfim, os seis meses passaram e o comerciante estava de volta na assembleia de Naqshband.

- Bem vindo, disse Naqshband. Quais são os teus sentimentos com respeito a nós depois deste tempo. Continuas firme na tua decisão?

- Ó grande mestre, disse o comerciante. Estou ansioso e iluminado pela vossa presença. Estes seis meses foram uma tortura mas uma sábia prova de paciência e contenção. Mas agora resplandeço perante a assembleia dos sábios e ver o teu rosto anula todo o passado como se nunca tivesse existido.

- Isso é muito grato ouvi-lo mas que me poderias dizer de Baba Farid?

O rosto do comerciante mudou de cor, ficando perplexo.

- Baba Farid? Conhece a esse homem vulgar?. Que poderia eu dizer?

- Melhor nada, meu amigo. Eu sou Baba Farid. Durante seis meses recebeste a minha visita duas vezes por semana. Estivemos juntos quarenta e oito vezes e falamos mais em esse tempo do que tenho aqui falado com discípulos que levam dez anos. Não estavas iluminado então pela presença, pela santidade e pelas palavras que tanto gostas de admirar em ti mesmo?. Não, meu amigo, aqui não valoramos os homens pela suas vestes. Tampouco pelas suas grandiosas palavras. Sai de aqui e volta quando o teu silêncio se volte eloquência e as tuas palavras silêncio.

O comerciante saiu entristecido e apenado.

Bahodine falou para a assembleia:

-Alguns dos aqui presentes sentides mágoa por este homem. Esse é um sentimento de auto-importância que devéis superar. Pensáis que caiu numa celada. Não há tal. Ele, de facto, foi muito afortunado e isto será compreendido ao seu devido tempo.

Anos mais tarde o comerciante foi admitido à presença de Bahodine. Mas o que realmente aprendeu é parte de outra história que não cabe aqui.


PS- Versão feita de cor sobre um conto publicado por Idries Shah

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Pedra de encanto




Canto e cantaria a pedra?


Feitiço para encantar as pedras.

"Ainda terás alento e pedra de canto" (Vitorino Nemésio)

pedra de canto
encantada pedra
pedra de perfil sereno
pedra velha
pedra febril em pedra fina
e pedra na parede
em roxa pedra
pedra do poema
pedra!

catedral de pedra
pedra do funil
fumo de pedra
pedra da noite
longa noite de pedra
pedraria do amor
amor de pedra
toque de pedra
em pedra arrefecida
pedra de pão
pedra de sexo
pedra do poema
pedra de chama
e pedra do sentido
vivo sonho de pedra
pétrea petra derruída
pedra negra
empedrada vida
pedra!

carne de pedra
pedra diluída
pedra no meio do caminho
pedra entre as pedras
pedra de alcanfor
e pedra fria
pedra que se levanta
pedra que caminha
pedra que se inquieta
pedra de coração
pedra nativa
pedra de luz
pedra perdida
pedra desperta
e pedra adormecida
pedra!

pedra sonâmbula
pedra prometida
pedra figurada
e pedra no caminho
pedra literal
e pedra do destino
pedra de moisés
pedra divina
pedra anómima
pedra da marinha
pedra do rei
pedra da farinha
pedra!

pedra sem fim
pedra definida
pedra arcaica
pedra da memória
pedra minha
pedra em carne viva
pedra da palavra
pedra ressuscitada
rosa de pedra
pedra amada
pedra de espinhos
pedra de flor
rosa empedrada
pedra encoberta
rosa viva
pedra!

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Declaração de intenções: a razão.

Não foi na minha Anatólia natal que esta história aconteceu mas podia ser. Foi na velha Luanda, onde a velha lua passa caminhando, onde devagar a lua anda. Sim , Luanda. Negra de lua branca.

Fátima era velha e negra e cega. Também algo sábia. Solitária vivia com o seu tambor, uma Shams de Marchena nos subúrbios da cidade.

Os rapazes eram novos (para que dar os seus nomes?). E não eram cegos nem sábios mas também eram negros. Levaram-lhe um pássaro encerrado na mão: pequeno coração a pulsar, esperança viva do ser, estrela oculta.

- Ai, velha!. Dizem que es sábia! Veremos!. Tenho um pássaro na mão. Esta vivo ou morto?. Responde! Responde!

- Ai, meu filho. O pássaro esta morto e bem morto! Eu não me engano assim tão fácil. Com quem pensas que falas!

- Estupida!- disse o rapaz, abrindo a mão- Aí vai o pássaro. Não podes ver como voa, pois não? Adivinha-o, então.

E riram muito aqueles dous rua abaixo. E atrás deixaram a que agora passou a ser chamada, Fátima a farsante.


Desde então há um dito: "Quando tenho razão um pássaro morre mas quando a perco um pássaro vive"



Razões?. Tenho muitas razões mas isso não é o importante (Nietzsche)