quinta-feira, 30 de abril de 2009

Culto da personalidade

To Be or Not To Be (Lubitsch, 1942)


Os estudos da sociologia e da psicologia contemporânera mostram como caimos sob padrões de comportamentos emocionalmente condicionados. Todas as sociedades tendem a fazerem isto com os seus indivíduos. Se olharmos as culturas ao longo da história estas programam aos seus membros a respostas que resultem "úteis" à tribo mas não necessariamente significam algo de valor para os indivíduos mesmos.


Com todas as críticas que se podem fazer á sociedade ocidental, digamos que esta se encontra num momento em que os indivíduos podem aproveitar isto para o seu próprio desenvolvimento de um jeito como não existira até agora. As pessoas esquecem que o autobombo sobre a "liberdade" é algo que não se começou a experimentar, de facto, até há bem pouco tempo. É uma liberdade em termos de virtualidade pois pode significar o contrário se não é utilizada construtivamente.


Se os indivíduos não assumem a necesidade de dar um sentido à vida sobre uma senda de procura da sabedoria simplesmente não há garantia de que nada do que se faça leve a lugar nenhum. Isto é também o legado ético do mais alto da cultura grega (ocidental, mas nem tanto como se pensa). Mas a sofística também é grega e calou muito mais do que a verdadeira mensagem dos mestres clássicos.


Entretanto sempre me surpreendeu o culto à personalidade (artística, política, social) presente em Ocidente sem nenhuma autoconsciência crítica. Perfeitamente visualizável nos grupos e capelas de todo tipo e condição. Muitas vezes feito de um jeito refinado e mesmo alambicado. Disfarçado também em muitas formas de contestação que mostra a fraqueza dos contestatários (uma das pessoas mais obsesionada com o poder que conheci na minha vida era um anarquista).


Se alguém reconhece a necessidade de um Mestre (e agora ponham-se a refelectir dous segundos sobre o que isto significa, realmente) causará surpresa em muitas pessoas que até esse momento o consideravam uma pessoa fiável. Passará a ser algo assim como uma pessoa de quem se diga: parece mentira, tão inteligente que é e pensa na necessidade de um mestre! Que decepção!

Todos os fantasmas, condicionamentos e medos inculcados desde a mais tenra infância afogarão a intuição essencial do homem de buscar um sábio que o ajude a ser um verdadeiro ser humano. E, como não?, sempre confiarão mais em Barrabás ou em qualquer homem de longas barbas que os impressione mas que basicamente não os comprometa nem lhes diga a verdade porque então teriamos um problema e nenhuma desculpa. E isso é intolerável: quem é ele para dizer isso?

Será alguem, é de supor, que não tenha uma reputação que cuidar ou manter.


Em último caso estamos dispostos a perder a reputação perante os outros mas perder a reputação ante nós mesmos é mais duro.


Como dizemos os galegos: ti dissimula!

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Verdade e mentira de polvos.

O polvo observa ao capitão Nemo


Há algun anos um grupo de cientistas decidiu fazer um experimento. Tratava-se de comprovar o comportamento de dous polvos.


Um procedente das turvas e poluídas águas de Marselha. O outro das limpas e oxigenadas águas do Atlântico Norte.


Deste jeito se colheu a ambos animais e se lhes mudou de hábitat. O marselhês passou às águas do Atlântico norte. O do Atlântico passou às aguas do marselhês.



Morreram âmbos em terrível agonia.



Ocorre-se-me pensar que foi demasiada verdade para um e demasiada mentira para outro. E tanto a verdade como a mentira devem ser absorvidas por etapas.



Sempre nos fica o consolo de que não somos polvos, não é?

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Aforismos e folhas soltas

Rumo às Cies, o 11 de Abril.


A ideia de que ensinamos em virtude dum desejo é errada. Ensinar não tem nada a ver com desejar ensinar. Não quero dizer que o contrário seja o correto mas deve ser pensado como um fator de distorção.

A razão pela que não falo, dizia um , é porque notei que tinha vontade de dizer algo. Notei isso como uma compulsão, de maneira, que é preferível ficar calado.


Que governem aqueles que menor desejo tenham de o fazer, dizia Platão.


Mas vai ser difícil que o façam pois não funcionam com o pau e a cenoura.



Enfim, que anarquia!

















terça-feira, 21 de abril de 2009

Teoria filosófica: a imaginação.


“A fundamentação kantiana da metafísica conduz face a imaginação transcendental. Esta última é a raiz de âmbos ramos: sensibilidade e entendimento. A imaginação transcendental como tal possibilita a unidade originária da síntese ontológica. Esta raiz está arraigada no tempo originário. O fundamento originário que se revela na fundamentação é o tempo. A fundamentação kantiana da metafísica parte da metaphysica generalis e converte-se na pergunta acerca da possibilidade da ontologia em geral. Esta põe o problema da essência da constituição ontológica, quer dizer, o problema do ser em geral”


(Kant e o problema da metafísica, M. Heidegger) 1


1.


A meditação heideggeriana que visa iluminar os problemas surgidos da viragem kantiana entre a 1ª e 2ª edições da Crítica da Razão Pura testemunham a ambiguidade problemâtica e conflituosa que a imaginação desempenha no âmbito filósofico da nossa tradição ocidental. De um lado reconhecida como potência essencial e genesíaca, de outro preterida pelas consequências que uma coerente e comprometida investigação poderia chegar a mostrar. Tal parece o recuar de Kant na 2ª edição, até ao ponto de comprometer a coerência interna da Crítica nas partes essencias relativas à dedução transcendental e o esquematismo. Este recuar perante a “desconhecida raiz comum” tem ainda uma dimensão muito singular e que deveria ter sido atendida de um jeito subtil pelas implicações que tem numa visão holística do conhecimento: trata-se da relação que se establece entre a “imaginação transcendental” e a razão prática. O problema não é tão só uma questão que se ponha do lado da razão teorética mas algo que se enraiza na determinação do “ethos”, o que muitas vezes é esquecido. Os motivos de este esquecimento são por si mesmos objecto de reflexão, mas levaria-nos fora da intenção presente2. A questão refere-se à consideração do “sentimento” de respeito na lei moral (do imperativo categórico) e a sua base ontológico-metafísica. A essência do respeito, a sua estrutura, segundo Heidegger, mostra a constituição originária da imaginação transcedental, neste caso como entrega imediata que se submete, como receptividade pura, ao mesmo tempo que acolhe a livre imposição da lei como espontaneidade pura, unidas em si originariamente. E isto fazendo-se patente de um jeito que não é objectivante nem tematizante. No respeito faz-se manifesto um dever originario e um actuar originário além de toda reflexão ou cisão determinante.
Vemos, seguindo esta interpretação de Heidegger, que nos parece rigorosa e subtil, como a imaginação transcendental tem realmente uma primacia ontológica que a situa nos alicerces das três perguntas kantianas ressumidas na questão: Que é o homem? Como responder a esta sem tomar em conta as dimensões transcendentais mas também empíricas da imaginação?. Uma das questões chocantes para uma tradição racionalista está dada no facto de vir explicar-se a razão pela imaginação, mesmo que seja “em última instância”. Não é de estranhar que Kant recua-se. Mas, no fundo, este recuar tem uma dimensão que vai muito além de uma simples questao académica, evidencia a tácita resposta que o homem ocidental dá a esta questão: o homem é aquilo que eu sou. Até certo ponto é quase inevitável. Certo sentido do rigor, da seriedade e da honestidade quase o impõem num homem como Kant. Outro tanto lembra-nos Marinho de Espinosa: as circuntâncias epocais e o modelo cartesiano fazem que a imaginação fique desvalorizada mesmo que reconhecida na sua potência originária. De facto parece existir uma experiência negativa e agnósica da imaginação que contrasta com a sua importância ontológica e transcendental, em Espinosa e Kant respectivamente. Tem-se medo de aprofundar numa intuição que poderia arruinar a estruturação lógica da filosofia. Se se pensa que Kant reestabelece a questão da imaginação na Crítica da Faculdade de Julgar isto só é medianamente certo. Reestabelece-se uma visão “sentimental”, muito interesante e provavelmente mais compreensiva que a teoria estética hegeliana, mas limitada pelo seu “agnosticismo” no sentido etimológico do termo. As suas vantagens são a sua perspectiva não-formalista que são o embrião de uma deconstrução representacional e sobretudo existencial, portanto não no sentido derrideano, que poderia ser levada adiante sem terem em conta a letra kantiana3. Mas isto leva-nos longe, bastante longe. Fora dos limites da lógica e da experiência de “Ocidente”4.


2.


“Aquí, a tarefa surge-nos já muito simplificada, se tivermos em mente que a imagem nos dá o trânsito do passado para o presente, como memória, como lembrança ou então como instância mais funda da memória, instância a todo momento oculta pela memória empírica do que extrinsecamente somos e surge: é então a reminiscência ou, para empregar a significativa palavra, saudade”
(Imagem e imaginação, José Marinho)
5


Marinho recupera a forma clássica em que desde o platonismo é vista a imaginação: como a intermediária entre a sensação e ideia. Ora bem, se isto se compreende bem, poderá ver-se que o sentido que possa ter aqui “ideia” é bem diferente do “mentalismo” da tradição com que os modernos tentaram reduzi-la. Assim “ideia”não seria a forma superior da “ratio” mas da “imaginatio”. Falarmos da relação entre sensação, imaginação e ideia seria o mesmo que decifrar a relação entre raiz, ramos, flor e fruto. Tudo é árvore. A árvore é o esquema básico da imaginação, a sua imagem: a imagem condensada que desvela a sua potencialidade. Se esta é a imagem utilizada por Aristóteles para apresentar o par de conceitos dynamis/energeia ligado à essência mesma da physis, tal é a metáfora que melhor se aplica à imaginação como potência seminal, originária, ao mesmo tempo que final, no processo do conhecimento6.
A saudade é vista por Marinho como um movimento seminal, ligada ao tempo originário. É claro que é uma instância que não pode coincidir com o tempo empírico. O tempo empírico é já o correlato de um espaço semantizado pela actividade fixadora do ego, do ego empírico. A ideia de reminiscência como movimento íntimo que vai além e aquém da historicidade fundamenta-se na relação que percorre intimamente a sensação ou o sentir até a visão unívoca. Ora bem, o que aparece intimamente como um acto de recordatório ou de lembrança é, na verdade, uma actividade imaginal criativa. A experiência subjectiva pode mascarar a realidade ontológica e a sua presença transferindo-a imaginariamente ao “passado” mas isto é tão só uma percepção da subjectividade empírica que pode precissar destes marcos referenciais. Entre a experiência e a compreensão da experiência há sempre uma diferença qualitativa. Neste sentido é possível falar de saudade do futuro. Existe uma ilusão de origem que é, ao mesmo tempo, correlato fenomenológico da saudade. Continuando com a metáfora da árvore, seria como se a semente no seu processo de crescimento e no seu desabrochar sentisse “saudade” de um estado “anterior”, quando na verdade é aquilo que a conduz a um estado “posterior”. Sem dúvida, se é possível falar de um tempo anterior, não é possivel referi-lo à historicidade da semente. Entramos assim no conceito tempo originário. Poderiamos dizer também tempo mítico. E também ao problema do tempo e dos tempos e a sua relação com a consciência, mas isto ainda deve esperar. Antes é necessário continuar desvendando relações entre a lembrança e a imaginação.


As palavras recordar, aprender de cor, fazem referência ao órgão de experiência espiritual e emocional de todas as grandes tradições místicas: o coração. Em sentido eminente não é do órgão físico que estamos a falar, mas de um órgão de percepção espiritual ainda que, obviamente, há correspondências. Há uma clara relação entre memória e imaginação através do coração como órgão de percepção teofánica. Neste sentido a filosofia ocidental é uma ciência sem coração, ou não sendo isso possível, com um coração embrionário, imaturo. O facto de não chegar a uma doutrina espiritual da percepção denota o seu estado embrionário e “sentimental”. Temos um coração sentimental mas não um coração espiritual, e é por causa disso que não existe uma autêntica doutrina da imaginação que tenha sido tomada a sério pelos grandes filósofos. Muita peocupação pela estética e pouca ou nenhuma pela beleza, a verdade e a bondade. Justamente o contrário do que tradicionalmente aconteceu no Oriente, o que se traduz numa estética anagógica, simbólica, de altos conteúdos intelectuais7. Para podermos fazer uma teoria da imaginação contemplativa é preciso ser depositário de tal conhecimento. É mais fácil negar este conhecimento a outros que afirmá-lo num próprio.


Todo o movimento entre memória e imaginação faz referência à capacidade visionária do coração em cujo segredo reside a função cognitiva essencial que pode ser comparada às leis de uma “poética trascendental” no mesmo sentido que falamos de uma “lógica trascendental” ao referirmo-nos à razão. Ainda que a a palavra ou logos pareça estar ligada à lógica, de facto não é assim. A poética denota a especificidade da linguagem como metáfora e como símbolo, a sua especificidade anterior à sua logicidade. Mostra também a sua dimensão mítica. O mito é, literalmente, uma fala mas refere a fala ou linguagem dos pássaros. A linguagem original adámica antes de Babel: os homens falavam diversas línguas mas compreendiam-se, pois falavam a linguagem do coração.8 O sentido ontológico de este órgão subtil enraizado na imaginação supera qualquer fixação de uma realidade objectiva, que não seja uma função criativa do próprio órgão, a função divina de uma criação constante.


3.


“Na verdade o mundo é imaginação. É Deus lembrando-se de si em concordância com a sua realidade essencial”
(Ibn al Arabi, Fusus al –Hikam, Os engastes da sabedoria)



O anteriormente exprimido tem um exemplo notório na obra poética de Luis de Camões. Todos conhecemos o poema intitulado Verdes são os campos, poema que foi cantado pelo Zeca Afonso de um jeito extraordinário. Recordemo-lo9:


Mote alheio:


Verdes são os campos
Da cor do limão:
Assi são os olhos
Do meu coração


Voltas:


Campo que te estendes
Com verdura bela
Ovelhas que nela
Vosso pasto tendes,
D’ érvas vos mantendes
Que traz o Verão,
E e eu das lembranças
Do meu coração.
Gado que paceis
C’o contentamento,
Vosso mantimento
não o entendeis;
isso que comeis
não são ervas, não:
são graças dos olhos
do meu coração.




Não há muito que comentar depois do já dito mas faz-se explícita a correlação existente entre visão-lembrança-coração-imaginação criativa. O poema, de um bucolismo aparente, revela-se um poema inspirado pela doutrina da imaginação mais em corcondância com os místicos da cardiognose. De facto, a compreensão do poema só pode ser feita se a pusermos em conexão com a doutrina do Homem Completo, Homem Verdadeiro, que com diferentes nomes é apresentada nas grandes tradições espirituais10


De facto esta aí o segredo da ontogênese com fundamento na imaginação conforme à realidade essencial de Deus, tal e como diz Ibn al-Arabi. A pergunta kantiana pelo o homem traslada-se de uma antropologia a uma antroposofia e de esta a uma teoantroposofia.



4.


“Então esses postos erguidos eram postos de lâmpadas de arco voltaico e todos as manhãs vinha um homem com uma malinha e por meio de uma manivela que trazia, fazia descer a lâmpada e tirava carvões já carcomidos, gastos, punha carvões novos, accionava o interruptor, verificava que a lâmpada brilhava, accionava de novo a manivela, subia a lâmpada...
Repetidas vezes vi isto, nunca mais se apagou em mim, a memória, ou a lembrança deste acontecimento. E quereis agora saber que no meu tão parco saber da imagem isto ficou para sempre!... Fui levado a perguntar-me se esta imagem não era algo como um ser real em mim, como outra consciência de mim em mim, algo que fosse profético, algo que tivesse sentido de que eu tivesse de saber muito bem...”


(Imagem e imaginação, José Marinho)



No seu livro Nicho de Luzes o grande teólogo e místico Al- Gazali estabelece uma fenomenologia da experiência espiritual a partir das diferentes comprensões da manifestações de luz, dos mundos imaginais intermediários e a actividade do coração. Faz o comentario Sura da Luz do Corão que diz:


Deus é a luz
dos céus e a terra
a luz de Deus é comparável
a um nicho no que há uma lâmpada
lâmpada num fanal de vidro,
fanal de vidro qual estrela brilhante ,
aceso no óleo duma árvore benta, uma oliveira,
que não é do Oriente nem do Ocidente,
a sua luz quase luminosa
ainda que não a toque o fogo.
Luz sobre luz!
Deus guia face a Sua Luz aqueles que quere.
Deus propõe parábolas aos homens.
Deus é sempre sábio
(Corão, XXIV, 35)


O que era um comentário inicial sobre a fenomenologia da imaginação transcendental desenvolve a sua rota para além de uma coerência excesivamente explícita que, porém, quer ter o seu final numa imagem que faça reflectir no elemento essencial de um “ethos” que permita conectar com aquilo que o leitor deve armar por si mesmo. Não seria muito pedagógico dar tudo feito. Há coisas que é presisso ainda arrumar e armar.


Gostaria de acabar com a história do encontro de dois grandes mestres do taçawwuf (sufismo), Abu Hafs e Junaid. O primeiro pertencia à tradição do Khoração muito ligada à experiência e desligada da intelectualização, o segundo era um místico e filósofo. Abu Hafs era ferreiro e dizia-se que não falava árabe. Foi então que Junaid lhe fez uma pregunta: - Qué é a Futuwah?. “Responde tu mesmo, disse-lhe Abu Hafs, vos tendes a expressão e a linguagem”. Junaid disse: “Para mim a Futuwah consiste em abolir a visão do ego e romper todos os laços diferentes à relação directa com Deus” . “O que dizes é muito formoso, respondeu Abu Hafs, mas para mim a Futuwah consiste sobretudo em obrar com rectidão e não exigir ao próximo que faça outro tanto”. Perante esta resposta Junaid pediu a todos os companheiros que se levantassem, pois, segundo ele, Abu Hafs acabava de dar uma definição da Futuwah insuperável.11



1 Kant y el problema de la metafísica, Martin Heidegger, F.C.E, 1986.
2 Tão só dizer que é sintomâtico de uma censura que opera como um bloqueio que impede ver as fundas relações da razão prática com o conhecimento humano. A ética não é algo que permite decidir entre um bom ou mau uso de um conhecimento que está ai dado. Num sentido essencial é a que permite orientar o rumo certo que produz ou descobre um conhecimento abrangente e total ao serviço do homem como fim. A outra perspectiva foca os problemas trucados ou carregados de antemão o que faz que muitas vezes não se compreenda o dito: “A resposta a um néscio é o silêncio”.
3 De facto sempre é necesário ter em conta a letra. Em todo o caso esta pode ser concebida como um dedo indicador que aponta além de si. Esta é a intenção com que se apresenta o primeiro ponto destes apontamentos.
4 Não entendo Ocidente num sentido geográfico mas como parte de uma geografia simbólica. O ocidental é o homem histórico e racional.
5 Conferência
6 A árvore ou a planta partem da cegueira da escuridão, da potencialidade não manifestada elevando-se por mor dum tropismo à procura da luz. Tal a especificidade íntima da physis. Pensemos ainda na metáfora “desconhecida raiz comum” ligada à imaginação transcendental e o tempo originário.
7 O sentido intelectual original, é claro. Não a razão mas o intelecto, e particularmente o intelecto contemplativo, não o discursivo
8 De facto, a transmissão iniciática de um mestre para com um discípulo é de coração a coração. Trata-se de uma actividade de concentração que é activada pelo poder da himma (no esoterismo sufi significa o poder criativo do coração), projectando o mestre sobre o discipulo a condição espiritual que lhe quer fazer alcançar. De facto há casos de discípulos notáveis que mantêm relação espiritual com um mestre sem quase ter intercambiado palavras durante anos e mesmo sem um contacto físico. É obvio que o poder do coração está ligado a poderes como a telepatia, a projeccção espiritual e à corporização espiritual, etc. Ibn al- Arabi dá multiplos exemplos da actividade de este órgao subtil (latifa)Cfr. La imaginación creativa en el sufismo de Ibn ‘Arabî, Henry CORBIN, Ed. Destino, Barcelona, ou também o livro muito claro intitulado Mundos imaginales: Ibn al-Arabi y la diversidad de las creencias, William C. CHITTICK, Ed Alquitara, Sevilla.(Neste último matizam-se as consideraçes de Corbin sobre o Ta´wil, a hermenêutica espiritual, pois há erros na interpretaçao do francês com respeito aos mestres clássicos)
9 Doce Canto em Terra Alheia?,Ed Laiovento, 1994. Santiago de Compostela (antologia camoniana)
10 Particularmente na tradição sufi é conhecida pela doutrina do Insani-i-Kamil. Aquele que alcançou a sua regeneração espiritual permanente. É ele o que pode dizer: “isso que comeis/ não são ervas, não:/são graças dos olhos/ do meu coração”. No taoismo é conhecido como Homem Verdadeiro. Existem ainda outros nomes mas a realidade designada é a mesma.
11 Futuwah, Al Sulami, Paidos Orientalia, 1991. Notas de Faouzi Skali.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Abel e Caim

Todos sabemos da morte de Abel às mãos de Caim. Mas sabemos realmente o que aconteceu?
No momento em que Caim matou a Abel e a sua alma voava aos céus este disse para si próprio:
Perdoa-me, irmão, deve ser muito duro ser mau tu só!
Mas Caim não soube nada disto, deste segredo de Abel.

Caim continuou vivendo, se é que temos que chamar-lhe de alguma maneira à sua sobrevivência. A vida era dura, certamente. Passaram os anos.

Por coincidências do destino Caim achava-se no mesmo lugar em que anos atrás matara a Abel. Sentado numa rocha comprovou como ainda estavam lá uma gotas de sangue seco. De súbito as lágrimas começaram a rodar pela sua face e então disse:
Perdoa-me, irmão, deve ser muito duro ser bom tu só!

Mas desta vez sabemos que Abel escutou, não é assim?

(Do Kitab al-Qalandar)

segunda-feira, 6 de abril de 2009

O Selo violeta


"O Selo Violeta representa as sensações que a cor violeta traz para a nossa mente. Este prêmio é dado aos blogs que têm algumas das sensações da cor violeta. São algumas delas: magia, encantamento, graciosidade, magnetismo... e tudo aquilo que parece mágico".

Agradeço a Contomundi que se tenha lembrado deste caderno de bitácora. Eu espero que Mario continue o seu estupendo trabalho de mestre inusual através também do viageiro Ismail. Um forte abraço.




As regras são as seguintes:


- Exibir o Selo Violeta no seu blog com as regras;

- Indicar quantos blogs você quiser, que você considera violeta;

- Avisar os indicados, não se esqueça disso!

- Escrever dois poderes mágicos que você já imaginou ter.


Quanto aos poderes, enfim, direi que fantasear e convocar co-incidências mas não tenho certeza de que se tratem realmente de grandes poderes. Ainda que gostaria muito de ter um poder sobre todos: ser indiferente aos poderes, mas esse ainda não consegui!


Os blogues que escolho entre os muitos que o mereceriam são:











Cidade maravilhosa

Cidade maravilhosa
Cheia de encantos mil
Cidade maravilhosa
Coração do meu Brasil

Cidade maravilhosa
Cheia de encantos mil
Cidade maravilhosa
Coração do meu Brasil
Jardim florido de amores saudade
Terra que a todos seduz
Que Deus te cubra de felicidade
Ninho de sonho e de luz
Cidade maravilhosa
Cheia de encantos mil
Cidade maravilhosa
Coração do meu Brasil
Cidade maravilhosa
Cheia de encantos mil
Cidade maravilhosa
Coração do meu Brasil

Berço do samba e das lindas canções
Que vivem n'alma da gente
És o altar dos nossos corações
Que cantam alegremente!

Cidade maravilhosa
Cheia de encantos mil
Cidade maravilhosa
Coração do meu Brasil

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Retrato antigo: pinturas e superfícies


O Senhor deu maior inteligência à mulher que ao homem”

Com suma cautela e zelo honra à mulher; pois é a mulher quem traz à casa a benção de Deus”

O ódio à mulher própria é um homicídio”



(Extraído de Bellezas del Talmud, de Rafael Cansinos Assens)



A visão de Deus na mulher é a mais perfeita de todas” (Mohiuddin ibn al Arabi)

Senhora da noite, erma donzela” (Teixeira de Pascoaes”)





I

Em aquelas tardes eu também adormecia.

Leves as flores respiravam pelos vasos, quando a transpiração da casa descansava ao final de corredores. Adormecia como estranha sonolência da Primavera que se acerca, pois no fundo de aquelas salas e retratos antigos, a rosa que permanecia se guardava numa memória de máscaras ou vozes que se enlenteciam, ou se congregavam. Vozes que atravessavam os tabiques da conversa íntima num murmúrio de ressonâncias e evocações distantes. As vozes de tia Letícia e de minha mãe Aurora, que sem cessar pintava, as vozes e os rumores das ruas de madeira que como uma linda imagem chegavam ao meu coração cansado. Pois, se queréis, a expressão das vozes recriava em mim cada gesto, cada olhar, cada veloz desejo que nascia dos poros subtilíssimos das minhas queridas amigas.

Eu então adormecia. Nos sofás ou na cama de lençóis claros, suava sobre o meu vestido floreado de cujas cores guardo uma memória tonal e rítmica: cores violáceas, amarelas, azúis que se tocavam como notas de piano ou breve luz. Atrás a janela, a janela verde da vida que avançava face mares antigos e longínquas histórias de olhos cálidos e terras luminosas. Sentia, na inquietação de um sono de tardes lentas e abandonadas, as figuras e os gestos, a cadência infatigável de Mago, o ferreiro que mostrava inacabáveis estórias sobre o metal e o ferro fundido; e era agora quando eu sentia, enfebrecida na tarde, o seu bater no metais de Vulcano: a sua velha frágua.

Os meus dedos, a minha fragilidade, o meu sorriso sobre os espelhos que dançavam nas tardes imprimiam em mim a gostosa música do baile: os meus pensamentos, sentidos, clamorosa pele saltava para que as barcas e os sorrisos que sem cessar pintava levassem aguarelas e tácteis óleos à superfície dos dias.

Em aquelas tardes eu também adormecia.



II

Quiçá o íntimo cansaço duma velha mão e um coração gasto se tenha iludido demais ao redor dum fôlego arrastado pelo tempo. Estranha ilusão duma velhice mórbida? Certamente, não responderei eu. Eu?

É preciso aguardar esta pulsão que devém ambígua e cuja devoção cresce nas tonalidades fosforescentes da memória sob o custo, quiçá, dum sem-sentido da escritura, trémula já na voz e no rasgo. Trémula como a vela que alumia os nossos sentimentos e as nossas páginas num sossego e numa calma branca. Luar dos quartos e prata das iluminações quando os passos e as vozes ressoam nova e lentamente atrás, atrás.

  • Devo continuar?

  • Continua!

  • Mas onde estávamos?

  • Não lembras? Tu adormecias.

  • Como poderia lembrar se adormecia?

  • Ah!. Sei lá! Acorda!

Mas eu também acordava na sala de bonecas de porcelana. Dir-vos-ei que me falavam? Cada uma era Laura, Marinha, Olga: a sua extensão e o seu dom.

Atrás, certamente atrás soavam os assobios e os signos que se introduziam pela janela verde da vida: as três esperavam e Mago esperava às quatro.

Sim, eu acordava, e depois de falar com as bonecas e de olhar as minhas aguarelas atravessava as ruas de madeira e casas de pedra antiga e alguns braços erguiam-se como para saudar-me, pois eu penso que muita gente gostava do meu vestido floreado comprado longe, em terras longínquas de nações esquecidas. Em realidade eu devia isto à tia Letícia que, abandonada à sua diletância, desaparecia subitamente durante dias, e até semanas, para voltar esgotada e ávida, carregada de tudo quanto era impossível encontrar.

Marinha, Laura, Olga e eu corríamos leves na tarde inumerável. Tínhamos ido até o cais, tínhamos brincado no dique negro, cantando nas doces barcas para encontrar um novo ritmo e um novo cair, um cair fugidio que reflectia no cais de prata, águas do nosso pensamento turvo.

Os olhos para o céu e os vestidos batidos pelo vento, irreverentes à sensualidade da nossa pele fazia-nos sentir a mais melancólica liberdade, pois o sol descia e vibrava o mar como a produzir ondas brancas: eram as suas piscadelas cúmplices.

Laura, loira, magrinha e de olhos verdes falava ao mar numa linguagem de peixe: Bu! Bu! Bu! e Ah! Ah! Ah! respondíamos todas.

Eram ecos, não é? Ecos duma escura devoção que nos envolvia.

Marinha, pensativa, pintava as unhas de púrpura vermelha vermelha e mais duma vez deixou cair gotas e gotas que choravam nas águas, pois então uma música falava por dentro das cores dum pequeno amor esconso: Marinha corava. Bu, bu, dizia, e uma lágrima cheia de sal deslizava-se, e nós, claro, fazíamos como que não víamos.

Olga era a silenciosa e subtil, indefinível voz dos nossos movimentos ligeiros.

Caminhávamos até ao Mago: esse ferreiro no Mar.



III

Através da febre e da ferocidade, sorrrir a pouco e pouco, a ferocidade dos dias impossíveis que nos traspassam e nos amam, a ferocidade da imaginação desvelada e rítmica que nos invade na ligeireza das estações e dos corpos, a nossa ferocidade, enfim, que a pouco e pouco sorri maliciosamente para abandonar a mão ao silêncio e à audácia: gestos, dias, olhos, vozes, ritmos, e Abril Abril nos nossos corações, nos nossos corações, nos nossos corações...

...nos corações escravos de Lig e Lung. Porque Lig mata a Lung. Porque Lung mata a Lig.

Um silêncio fugaz envolve-os, uma quietude. E de súbito um resmungar de vozes e de espadas, de arcaicas maldições e de gestos que ocultam os dentes de lume e sangue.

Durante um tempo a luta dá-se num jogo de cegueiras e movimentos automáticos, de intuições precisas e assombrosos encontros marciais. Mas a pouco e pouco chega o declive, a decadência atonal e tudo se volta mais espesso, mais lento, mais insensato e temerário. Tudo se volta gris e perdido nos rostos de Lig e Lung, quando o sol vai perder-se no horizonte, quando tudo se perde definitivamente nos seus corações ecravos.

Porque Lig mata a Lung. Porque Lung mata a Lig”

E aí estava Mago na roda central do mercado, de movimentos astutos voltando a olhar, rápido e fugidio, para os ouvintes. Era o fim do conto. A perversa história dos ódios de Lig e Lung, das suas mulheres Mitsuru e Li –Po caídas na desgraça dos temores sem fim. Amadas personagens da nossa fantasia.

Aí estava Mago, entre as espadas, mostrando a sua ironia cúmplice, de olhar feroz. Contemplava assim a nossa ferocidade delicada e límpida e era então quando a sua boca alumiava o fogo, ele dizia, da sua velha frágua. Sim, sorríamos a pouco e pouco: febre e desvelo dos nosssos corações: do nosso brilho.

O mercado era como um formigueiro de milheiros de cores. Lentamente, ao fundo, chegavam cargueiros vagarosos cheios de centeio e milho, de trigo e chá.

E nós, nós voavamos pelo mercado mentres minha mãe pintava as grandes velas dos barcos, as túnicas estendidas ou os azulejos dos pátios: pintar os veleiros como pequenos homens e os homens como barcas lentos a cantar. Velas, pois, de barcas, e velas de pensamentos. Cores da juventude amaviosa e enfeitizada de minha mãe.

Partir.Partir

Um feitiço de braços e de vozes. Braços brancos dos caminhos, promesas de estreitos abraços, e braços negros dos imensos buques que, erguidos contra a lua, falam de outros países apartados. E estão estendiddos para dizer-me: estamos sozinhos, vem! E as suas vozes chamam-me, a mim, a seu semelhante, já prontos a partir, agitando as asas da sua exultante e terrível juventude1



Assim pintava minha mãe quando nos esquecíamos do pequeno mar dos nossos olhos. Ser náufragas por entre o sal e por entre os barcos sem memória e sem rostos. Partir, como uma ideia, sem rumo fixo. Partir. Perder-se







IV

Laura entoava, como vidro, o seu encantamento:



Lig e lung estão perdidos

e as suas mulheres dormem

sob os seus olhos vadios

em tardes de arroz

e chumbo

Lig e Lung se vão ao fundo

e as suas mulheres dormem.



Tristeza e melancolia e, porém, a mais veloz e súbita felicidade do tempo que não passa. Pensar entre os cantos na amada Mitsuru de olhos oblíquos e nas suas flores: lírios, rosas, açucenas. Pensar em Li-Po, a astuta tecelã: os nossos amados tapetes!



Tapetes e flores que alcançavam e viviam a minha casa. Atravessar os corredores e habitar os quartos na recriação de Li-Po, de Mitsuru, dos seus terríveis homens.

E aí vem tia Letícia com grandes taças de chocolate. Era então quando fazíamos uma improvisada encenação com teias e vestidos passados de moda, papel, cartão, sedas: as nossas ilusões. Marionetes e títeres.

  • Podemos começar?

  • Adiante

  • Quem fala?

  • Adivinha com o coração, pensa com as tuas mãos. Respira pela ponta dos pés. Vês com os teus dedos?

  • Onde está o meu chocolate?

  • Cala e anda, bebe e cala. Fala Clara?

  • Calma

  • Clara!

  • Chama!?

A chama da vela apagava-se. Bela chama que se extinguia numa doce impressão de revolta. Nós estávamos rígidas, tão rígidas como bonécos, tão incompreensíveis como as nossas fabulosas pistas.

Uma vela, um mínimo candeeiro e aí estavam os nossos jogos de pátios azúis e de distâncias de nuvem. Os nossos olhos de carvão e vinho reflecteriam-se nas taças de chocolate de tia Letícia: carvão, vinho (nos nossos olhos, no nosso brilho) e chocolate sobre as colecções de borboletas e cenários de roupas velhas que descem como um conto de falas ligeiras. Como escrever no círculo mágico das horas oblíquas um momento ou a intuição dum momento? Doce, pois, percorre pelos sensos a voz da casa e tudo acorda veloz, veloz como dedos finos, na sua mímica e no teatro do mundo: a nossa pequena estância.

Vagarosamente a tarde decaía e a noite antiquíssima impunha o seu desvelado sonho. Eu crescia com as minhas incomparáveis amigas na mais iluminada das excitações de seda ou antigas varandas. Era eu realmente?

Intuir um poema e submergir-se, ingenua, no espírito das cousas, agora e antes, como buscando um devir estranho às nossas condições, ao que fomos e ao que somos. Perdidos esses momentos e esses tempos (todos os momentos e todos os tempos) voltam (voltavam) a ressoar em mim as velhas caracolas marítimas, labirínticas e adormecidas como uma sigilosa ventura. Fazer-me tangente ao sistema estilístico no que encontrava inumeravelmente situado na multiplicidade das minhas relações ambíguas e perder-me para sempre entre as personagens vivas e mortas nas que habitava. Absorver-me feroz e febril numa vidência dioturna.

Reparava, na minha imaginação de borboleta anoitecida, nas minhas necessidades expansivas correndo na quase-noite perto da Casa dos Matemáticos ou no Largo dos Filósofos, que nunca apagavam as suas horas de vaga-lume. Criavam um ritual de carácter peripatético para os seus encontros, como velhos animais noctâmbulos e eu ouvia as suas palavras de ressonâncias perdidas, entre arquivoltas e pátios de azulejos. Escrevia um poema, que era a minha cegueira branca ou sorriso de aquarela, e via a minha mãe conversar sobre as cores do mar com o inigualável Mago.

E depois dum tempo de vigílias e efervescências entre pinturas e poemas eu dormia profunda e sossegadamente. Era então quando uma caracola de mar soava aos meus ouvidos, ávida da noite. E imaginava Lig e Lung perdidos nos seus ódios no meio duma tempestade. E a noite era assim.



V



  • Navegas sobre as palavras e os rumos incertos? Navegas sobre os dias e os tempos sem direcção nem rosto?

  • Aqui estão os despojos do mercado. Como brilha o grande osso, a espinha dorsal da última baleia!

  • Estas a fugir nos dias sem rasto. Que estratagema fazes?

  • Deixa-me passear o meu pensamento descalço. Deixa-me guiar o diálogo ao vazio. Avançar suave e leve.

  • Deixar, deixar. Deverias tomar tu a palavra, querida. Fazer com ela mais do que queixar-te e divagar. Não te lembras do jogo da verdade?

  • A verdade? Já chegamos ao ponto de pormo-nos tão sérias? A verdade! Deverias saber que as mulheres nunca dizemos a verdade. A estas alturas!

  • Tão desapiedadas somos? Ou é pura piedade?

  • Uhm! Este osso de baleia, estas palavras imensas, este esqueleto tao branco: tão belo ao luar! Não sintes uma ligeireza?

  • Divagas. Não sei se dizer que já estás senil, ainda que mais bem pareces uma rapariga mal educada. Aos teus anos, minha velha!

  • Diria que estou a consentir excessivamente a tua vigilância. Vejo que não me posso descuidar uns breves instantes porque já estás prestes a censurar, para julgar-me. Quem és tu para julgar-me?

  • Conheces perfeitamente a minha função: não brinques com a tua ingenuidade. Mas vejo que já nos começamos a entender. Já falas com um pouco mais de senso.

  • Tão velha e tão rapariga, como poderia ter senso? Aliás, não vês que há lua cheia?

  • Já sabia que hoje não me seria fácil conduzir-te. Senta aqui. Podemos ver muita cousa.

  • O cais está como nunca esteve. Esta última baleia brilha com uma sinceridade excessiva. E sentar na sua cabeça a tocar o violino? Gostas?

  • Realmente estás impossível. Não sei em que acabará tudo isto?

  • Não tenhas mágoa, as mulheres somos realmente desapiedadas e o que seja será.

  • Mas deves continuar e não dizes uma só verdade. És tão frívola que sinto vergonha. Que história é esta?

  • Olha para aí. Aí está Mago dirigindo-se ao Pavilhão Vermelho. E lá para abaixo as nossas queridas amigas, Marinha, Laura e Olga. Não vês Lig e Lung entre elas? E aquela janela com duas sombras?: são Aurora e Letícia. E ao nosso lado Mitsuru e Li-Po. Como podes dizer que minto?

  • Mitsuru e Li-Po, coitadas! Estão tão silenciosas que quase não reparava nelas.

  • E nós estamos a falar demais. Realmente, às vezes, es odiosa. Sempre consegues os teus objectivos.

  • Ah! Ah! As mulheres somos assim, minha velha!

  • Silêncio!

E assim nos entregavamo à noite acesa, a de lantejoulas rápidas. Uma noite breve e desconhecida, de silenciosa soidade. As velhas vértebras da última baleia alumiando no cais deserto as cores de antigos versos demorados.



E a grande cidade agora cheia de sol

e a hora real como um cais já sem navios”2



Ouvir, então, como o violino negro descansa sobre as horas descobrindo as difusas cidades. Ouvir na antiga sombra da melancolia o recanto enunciativo e perverso ancorado nas cordas, abrindo ao leve as janelas do nosso entendimento. Ouvir, mesmo empanhado na vaga luz dos candeeiros o amontoado coração das dúvidas: ferozes e vãs

Ouvir no silêncio...e acordar

VI



Contudo, fica posto o problema da verdade. Os fios mesclam-se e a memória dispersa-se numa penumbra de imagens. A verdade? Quiçá no final tudo seja develado. Mas é possível que haja final?.

O certo é que pensar no final deixa-nos como velhos títeres de fios cruzados.

Mago sempre acaba as suas estórias: esse narrrador perfeito. Escolhe com a elegância do seu espírito delicado o momento exacto para a conclusão. Lança ao chão o seu chapéu como numa dança de espadas e o súbito final aparece , impossível e redondo.

Lig e lung morreram, mas foi esse o final? Continuavam em nós o espírito aberto e infindável de Mitsuru e Li-Po. Entre nós tecíamos estranhas continuações que alimentávamos de rarezas e perguntas.

As cousas têm fim, mas os contos podem ter eles fim?

  • Será que a verdade e o final irão unidos?

  • Será?

  • Tu que pensas, Mago?

Mago já não diz nada em direcção ao Pavilhão Vermelho. Silencioso e oculto.

Era o momento em que podia chover e eu nadava na cor que se definia entre os faróis distantes e a luminosidade de aquarela num verde claro ou num amarelo de fogo. A pele do anoitecer era sensível ao empapado sorriso do meu vestido, quiçá já povoado de olhos que espreitam na esconsa escuridão incontável. Uma noite astuta e vigilante que reescrevia sobre a sua textura as novas casas das marcas e dos corpos.

Os telhados que ardiam e as sílabas pronunciadas pelas vozes ocultas ou inexistentes configurando a nova dimensão da busca. Sim, duma busca nova: entre a perda e o esquecimento.

Aquela noite fugaz e sombria o meu corpo deambulava primeiro pelas telhas acesas, depois pelas praças e pelo chão. Primeira vez em que o corpo, solitário e fraco, se adentrava pelos meandros da solidão e das trevas. Sim, a primeira vez é também o final de algo.

Eu queria ver, imaginava ver, Mago dirigindo-se a uma partida de xadrez perfeita, como uma figura sombria que todas as noites jogava a sua liberdade numa batalha sem par. Ver a Mago dirigindo-se até um fundo cada vez mais encarnado até que se perde num combate inigualável e único. Ver os movimentos de minha mãe Aurora entre os países da sua devoção, a pintar as luzes vagas das noites de todos os povos interiores. Ver as minhas queridas amigas flutuar majestosamente entre lençóis brancos, estendidos e vivos. Ver a nossa juventude e a nossa admiração, a nossa devoção constante e silenciosa num labirinto secreto, profundo, a crescer por dentro. Ver a tia Letícia atravessando os mares para voltar de manhã cedo como se tivesse ido comprar o jornal, entrando nas pontas dos pés. Ver as personagens de Lig e Lung, do conto infindável mover-se em múltiplas combinações e ressurreições, alumiando e alumiados pelo espírito das cousas: a voz dum narrador que os acordasse.

Eu andava lenta, tão sombria como faróis gastos entre as almas que me desconheciam. Eu olhava para a janela verde da vida e via aquela rapariga adormecida entre os lençóis de seda e flores. Vibrar no almejo e nos cristais, vibrar nesse signo, nesses pequenos agoiros era já um lento cair que o tempo deita sobre nós. Ela, a lenta rapariga adormecida, ingénua e sorridente. Era eu realmente?

Por enquanto, caminhar na desolação da verdade, na sua separação infinita. Ver a Mago entre os faróis, perdido, á beira do esqueleto da última baleia, acercar-me a ele, estender a minha mão meiga e nada, nada: não ser reconhecida. Ver à minha tia Letícia e á minha mãe falar sossegadamente e ser invisível à sua beira. Marinha, Olga, Laura esquecidas entre si como se nunca tivessem falado.

Era uma noite só comparável à ferocidade da nossa existência juvenil e altiva. À minha memória acudia o poema escrito na vibração da insónia



Ao caminhar descalça pelas aquarelas

um porto perdido espreita

os pequenos fósforos

pelas aquarelas

e um olhar de criança

é o que me faz pintora

perdida entre os malecões3

entre um cais de prata

a pintar

de negro e de negro

o vazio dos barcos

ardendo nos fósforos

pelas aquarelas



Se queréis é o final, com a certeza acutelante do ser e da verdade. O final que me envolve fugidia e tremulenta, quando penso que em aquelas tardes eu também adormecia. Sempre fica essa saudade e essa metáfora, esse salto entre os sentidos e as certezas, essa indagação de uma experiência inexplicável. Sempre fica uma pergunta:

- Quem fala?

1Um fragmento do livro de James Joyce A Portarit of the Artist as a Young Man.

2Dous versos de Fernando Pessoa

3Diques

quinta-feira, 2 de abril de 2009

O retrato de Lig e Lung


Houve uma vez uma estranha luta entre reinos. Foi um combate surdo durante anos, cheio de medos e desesperanças.

Desde sempre Lig e Lung estavam destinados a matar-se mas ninguém sabia o porquê. O facto de que o motivo fosse desconhecido não mitigava o ardor de destruição. Pelo contrário: de um jeito subterrâneo acovilhava-se na consciência, inspirava os escritos dos poetas, as palavras justificadoras dos historiadores ou a mera organização do lezer. Pior que um motivo concreto actuava este fantasma, pois cada acto devia recordar a necessidade de destruir ao inimigo, reforçando a íntima consciência dum vazio íntimo que revelaria a inanidade e o sem-sentido de este ódio atávico.

O estranho é que Lig e Lung nunca se tinham visto. Nunca tinham falado, nunca intercambiaram uma frase, nunca entraram em contacto de modo algum. Mas odiavam-se desde sempre.

Por mais estranho que pareça a vida destes dous reis era idéntica en todo ponto, até nos mais mínimos detalhes cumpriam um ritual mimético. Eram como dous reinos indiscerníveis separados por um rio que, diziam, fazia cair no esquecimento a quem o atravessasse. E havia muitos motivos para não atravessá-lo.

Durante muitos anos em ambos reinos se falava sobre o terrorífica que era a vida do outro lado. Do tiránicos, canibais e absurdos que eram o seus habitantes e como isso era uma afrenta para a própria identidade. Em qualquer momento podiam invadir o reino contrário. E então deixariamos de ser a nação Lig ou a nação Lung!

E assim viviam uns frente aos outros.

Mas é claro que lá no fundo do fundo da íntima consciência dos reis havía uma Dúvida e também uma Curiosidade. Como seria Lig, como seria Lung?, perguntavam-se na essência desconhecida da sua intimidade esquecida.

Um bom dia convocaram aos melhores pintores e disseram:


- Por ordem real visitaréis o Inimigo, chegaréis ao palácio real e desenharéis um retrato do rei. É o nosso real desejo, a nossa real necessidade e a nossa real ordem. Temos realmente dito!


Num princípio ninguém comprendeu nada. A ordem era absurda. Como se de súbito lhes tivessem mandado escalar a lua. Era REAL a ordem do rei?

Pois devia ser, porque rapidamente foram postos nos limites da cidade, enviados como mendigos para melhor cumprir a sua função de espiões-pintores.

Como uma caravana de almas em pena iam os artistas rumo ao rio do esquecimento mas o medo acumulado durante gerações produziu a ousadia de uma Invenção.

Sim, os artistas não obedeceriam ao rei. Eles inventariam um retrato. E assim surgiu a Mentira.

Os pintores fechavam os olhos e imaginavam o rosto de um rei, pintavam-no com detalhe mas a sua imaginação apenas podia conceber um rosto que não fosse o do seu próprio rei. Como poderiam imaginar um rosto que não tivesse o rosto do rei, do seu único e absoluto rei?

Assim pois, apresentaram o retrato com todo tipo de explicações.

Lig e Lung levaram as telas para os seu quartos. Na solidão queriam contemplá-los. Aí queriam saborear o frenesi dos seus medos perante o desconhecido mas um arrepio envolveu a ambos ao abrir o envoltório. Eles eram o inimigo, o inimigo eram eles. Houve um momento de frustração e de fúria, uma ira que surgia dos abismos do ser queimava-lhes as vísceras. Mas a pouco e pouco chegou a calma e a Decisão.


E foi assim como uma mentira se converteu em Verdade. Ali, na planície dos exércitos devastados e dos homens desmembrados, no centro da poeira ilimitada, sob o sol-pôr, Lig e Lung se dão morte, amando-se e odiando-se na intimidade dos seu olhos, na súbita consciência da sua identidade especular.

Justo quando o sol é devorado pela terra jazem Lig e Lung abraçados e mortos.


Fora da história


O bobo e o poeta louco, as crianças e as mulheres, os pintores encarcerados, os sábios apedrejados estão de festa. Ouvem-se as suas canções no rio, as suas anedotas, as sua músicas. São belos e lentos funeráis de ledice. Surgem os contos da rapariga descalça. Há batalhas de flores numa procisão de barcos sobre o rio, o rio da memória e da vida.


Canção

Barcos que vais sobre o rio

canto-vos uma cantiga

Ó barcos que vais no fio

com flores da minha amiga.



Barcarolinhas da lua

deixai que morra o morrido

que volte o tempo perdido

para bailar na falua.



Fonte da memória viva

rio do sentido nu

despo-me sem eu nem tu

para que fuja a cativa.



Barcos, barcas e barcarolas

iluminando os caminhos

fachos, faróis e farolas

de crianças e marinhos.



Barcos que vais sobre o rio

canto-vos uma cantiga

Ó barcos que vais no fio

com flores da minha amiga