sexta-feira, 27 de março de 2009

Os três domínios


Tradicionalmente reconhece-se a existência de três domínios da educação. José Marinho descreve-o como pedagogia, paideia e anagogia. Este esquema triplo é consistente com todas as tradições humanas. Pode ser encontrado e reconhecido entre todos os povos e tradições mais antigas. Foi, porém, contestado e mesmo eliminado na sociedade ocidental. A chamada civilização ocidental é a única que deliberadamente erradicou (na medida em que pode ser erradicado) este reconhecimento. Os seus intereses fazem que a ideia de sabedoria se converta num grosseiro lugar comum. Elimina-se a ideia de que um mesmo documento (um poema, por exemplo)tenha vários níveis diferentes de compreensão segundo a evolução interior da pessoa. Mas sobretudo elimina-se a ideia de "mestria": a necessidade dum aprimoramento superior do homem que implica uma relação iniciática entre alguém que aprende e alguem que ensina.

Idries Shah escreveu livros notáveis como Aprender a Aprender ou Aprender a Saber. Neles explicita cousas que simplesmente estão ausentes (ou estavam ) no nosso entorno cultural. Se nós descobrimos a física moderna, outros possuem outros saberes que aqui simplesmente estavam em estado de superstição.

O próprio Kant põe a diferença entre saber e sabedoria. O plano anagógico, o tecto que poderia dar sentido à casa simplesmente não existia. É como se se dissese:

- Para que queres uma casa com telhado? Não sejas absurdo. Desde quando as casas têm telhado?

Quando alguém pretendia mostrar uma verdadeira casa questionavam que se começa-se pelos alicerces e não pelo telhado mesmo. E esta é ainda a situação em muitos lugares científicos, cultos, e filosóficos.

Papagos (Norteamérica)



Canção

Levantei cedo
na manhã azul
meu amor tinha saído antes que mim
veio correndo cara mim desde as portas da alva


Na montanha Papago
a presa moribunda
olhava-me com olhos do meu amor

quinta-feira, 26 de março de 2009

Tuaregs


A gazela que tu feriste

veio morrer sob os tamarindos

perto do cerco onde as minhas escravas

lavam as roupas.

Encontramo-la ao entardecer

de volta às nossas tendas.

Ainda estavam suaves os seus membros,

e as suas pálpebras

não cobriam totalmente

os seus longos olhos tristes.

Na haste da lança

reconheci a tua marca.

Serei como a gazela?

Responde-me, por Deus,

oh tu,

cujo olhar

feriu o meu coração.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Indios de la Pampa


Nuestra llanura.

Esta es, hermanos, nuestra tierra ancha
donde nada se detiene, donde todo pasa,
y el viento no duerme y el horizonte anda

Esta es, hermanos, nuestra tierra ancha,
vivimos en toldos. Cuando el tiempo cambia,
cambiamos los toldos. Así es nuestra vida.

Esta es, hermanos, nuestra tierra pampa
No es tierra estrecha, la tierra es bien ancha.
Por mucha que quieran a todos alcanza.



Invocación al sol

Dame siempre mi cielo azul,
hombre antiguo de rostro iluminado
Dame una y otra vez mi nube blanca,
alma vieja de cabeza encendida.
Dame siempre tu dorado abrigo,
gran cuchillo de oro por quien
sobre la tierra estamos parados


terça-feira, 24 de março de 2009

Extinção


Se fizermos uma olhada rápida aos últimos duzentos anos da história humana vemos uma aceleração progressiva em todas as ordens. Calcula-se que neste século podem desaparecer a metade das línguas do planeta e um 20% das espécies animais e vegetais. É algo descomunal. Os últimos informes sobre o "Câmbio climático" são sobrecolhedores pela celeridade das mudanças. A demografia é uma bomba em activo ( e o Papa com as suas obsessões por África, enfim). A economia (que deveria estar subordinada a uma ecosofia) é um latrocínio.

Como quase sempre acontece há uma inercia, inevitável por outro lado. Mas os signos de tensão e frustração incrementam-se. Sobretudo a sensação para muitos de que não há uma saída ou de que a própria vida apanha umas dimensões absurdas.

Isto leva a certos posicionamentos à defensiva: um conservacionismo que não é capaz de conectar-se com as dimensões do problema e propõe soluções voluntaristas ou moralistas ou simplesmente tecnocráticas.

É clara uma manifesta linha de evolução errada em muitos processos que arramcam desde a Revolução Industrial e provavelmente desde antes (digamos circa 1500). A responsabilidade humana neste processo é óbvia mas seria provavelmente superficial focá-lo só desde essa perspectiva. Poderia haver dimensões cósmicas implicadas no processo?

Não pretendo situar-me na posição apocalíptica ou algo assim mas de ver com claridade como estamos numa situação excepcional dentro da história humana. Como isto põe em xeque todas as formas conhecidas com as que tentamos compreender e limitar a nossa experiência, e como as respostas não podem ser mais, mais e mais. Põe-se o problema da qualidade sobre a quantidade. Há formas da experiência que se centram sobre o local e que porém têm um alcance global.

Provavelmente a excelência não consista em planos delirantes de controle sobre a totalidade mas agir desde o local, desde o autóctone sobre a base da experiência humana essencial. Um trabalho arquetípico como na Arca de Noé: a ideia de que trabalhamos com maquetas e cenários que se interconectam. Cada animal são todos os animais, cada ser humano são todos os seres humanos.

De que maneira a sabedoria se conecta com a continuidade da vida e que tipo de impacto tem sobre a organização viável da vida, além das aparências? Não se trata de pensar maquiavelicamente sobre a base de cálculos infinitos e infinitessimais mas de harmonizar-se com a corrente evolutiva em acção. Isto nas circuntâncias actuais sente-se como uma inusitada pressão que obriga a buscar uma saída.

Sempre me chamou a atenção a extinção súbita dos dinosáurios e como esses pobres mamíferos do tamanho de um rato se impuseram depois. É descrito como uma "casualidade fortuita". Penso como as dimensões mastodónticas e sáuricas da nossa civilização poderiam sofrer uma catastrofe similar, e quase tenho para um romance de ciência fição.

Continnuarei com o tema que agora deixo inconexo e sem uma projecção clara.

Os meus concidadãos, ou os seus políticos, propõem a Torre de Hércules como Património da Humanidade. Esperemos que o homem também o seja. Algum dia.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Politicamente correcto


Contentando a Sancho Panza.

Acabo de ler uma notícia pela que a Real Academia de la Lengua Española elimina a quinta acepção do dicionário da voz gallego. Não é uma maneira de borrar a memória sociológica que nos permitiria comprender cousas sobre nós mesmos e sobre os outros? A que esterilidade estamos chegando?

A acepção eliminada é "tonto".

Reclamo para mim essa acepção. Por favor, estou canso dessas inteligências progressistas e politicamente tão correctas.

Sempre poderiamos pensar que quando eliminamos o pior também eliminamos o melhor. Lembra-me aquela velha da estória de Rumi que lhe recortou o bico e e as plumas a um falcão e depois disse:

- Muito melhor assim, já pareces um verdadeiro pombo!

Suponho que isto é parte do programa de normalização linguística, a neolíngua de Georges Orwell. Hoje em dia todos nos sentimos ofendidos por todo. Todos somos vítimas e é uma pena.

domingo, 15 de março de 2009

Nasrudin o galego


- Sobes ou baixas?
- Depende

Há uma maldição de tradição cigana que diz “Tengas pleitos y los ganes”. Os galegos sabemos de pleitos, somos dados a isso. Eu mesmo ando envolvido num com uma construtora. São algo que nos muda o humor e que nos obriga a descer a um terreno emaranhado e “humano”. Mas é preciso justamente nestas situações tomar as cousas com filosofia e, sobretudo, não perder o sentido do humor.

Já relatei como o meu avô me tinha contado estórias nas que um galego era Nasrudin. A estória que vou relatar agora contou-ma muitas vezes. Tem como protagonistas a um galego e ao ministro Montero Ríos (também galego). Esta mesma estória pode ser encontrada em algum dos livros de Idries Shah sobre o Mullah Nasrudin.


A JUSTIÇA


Montero Rios levava o pleito de um paisano que vivia em Madrid. A cousa estava difícil e as possibilidades de ganhar eram poucas. O paisano teve uma ideia:


- Não pensa que se fizermos um regalinho ao juiz a cousa podia mudar.

- Nem falar. O juiz é castelhano, um homem recto e insubornável. Se fizer isso perde o pleito. Nem se lhe ocorra.

- Está certo disso?

- Absolutamente.


Vão ao pleito e ganha o galego. Montero Ríos confessa-se:


- Não esperava que ganhássemos, sinceramente. Estou surpeendido.

- Se não for pelo regalinho...

- Como? Está-me a dizer que lhe fez o regalinho ao juiz?

- Fiz, mas em nome do outro.



-Porquê os galegos respondéis a uma pergunta com outra pergunta?

- Fazemos isso?

quinta-feira, 12 de março de 2009

Que é o homem?


Kant estabelece três disposições originárias no ser humano que ele denomina de técnica, pragmática e ética. Imagino-as imbricadas mutuamente como ectodermo, endodermo e mesodermo.
A questão ética liga-se à raiz interna da intenção e a vontade. A árvore que aspira a crescer desde um tropismo, desde uma intenção inflexível.
Mas que é o homem, realmente?
Proponho este video que rodou Arnaud Desjardin, nos inícios dos setenta. Não é algo espectacular mas fala de técnica num sentido que se diferencia do sentido habitual que lhe damos a esta palavra:

http://www.youtube.com/watch?v=f9Z2MVp6vqg

Para ver mais:

http://www.youtube.com/watch?v=7r2YE5xudhc&feature=related

http://www.youtube.com/watch?v=Cox8fMHJQtU&feature=related

quarta-feira, 11 de março de 2009

A herança: ou de porque 1+1 é igual a 1

Desde que tinha dez anos lembro-me desta estória. Ficou gravada em mim de jeito indelével e só muito mais tarde é que a encontrei dentro de uma colecção de contos de sabedoria. Os contos deste tipo têm uma função mais alta que a da moralização e são parte de um sistema de compreensão que opera além do condicionamento habitual.

Um homem ancião faleceu e deixou aos seus três filhos em herança 17 camelos sob as seguintes condições:

O mais velho devia receber a metade, o segundo um terço e o mais pequeno um noveno. Deste jeito a herança não podia ser distribuída. Foram consideradas várias hipóteses mas alguém fez notar que o que propunham alguns asessores, sacrificar algum camelo, era contrário à prudência e ao bom senso que sempre mostrara o falecido. A herança estava assim sem repartir. Haveria aí alguma sabedoria oculta?

Foram então perfuntar a um sábio. E este falou assim:

- Levem este camelo e distribuam a herança.

Tinham agora 18 camelos que foram repartidos segundo o requerido pelo velho.

O primeiro recebeu 9 camelos. O segundo 6. E o terceiro levou 2 .

Sobrou 1, que devolveram ao sábio.

E não me venham agora com estórias de porque o pai fez essa partilha. A herança dum pai não se discute, não é?

terça-feira, 10 de março de 2009

Comunicação cultural: os muçulmanos


Há vários anos sustinha uma conversa com um conhecido sociólogo, um homem que foi muito importate para mim. Aprendi muitas cousas dele apesar de tê-lo encontrado pessoalmente só em duas ou três ocasiões. Uma pessoa inteligente, aguda e perspicaz. Com um toque irónico de formação anglosaxónica. Numa certa altura falávamos sobre os sufis. Disse ele, mais ou menos:

- Os sufis são um caso surpreendente de uso renovado de uma tradição, revelam uma coragem e um grau de afirmação que contrasta com o entorno fortemente fanático (referia-se ao mundo muçulmano). São, para muitos, os autênticos cristãos.

Fiquei perplexo, e vencendo o sentimento de respeito que tinha por esta pessoa, consegui balbucir:


- Ainda bem que é possível encontrar cristãos entre os muçulmanos porque entre os cristãos, concordemos, já não é possível!


Isto não é estranho mesmo entre pessoas de alta preparação intelectual. Existem uns preconceitos sobre o mundo muçulmano em geral que actualmente se está a incrementar. E não me estou a referir às situações actuais só mas o que o mundo muçulmano e árabe significaram para civilização humana.


Desde o meu ponto de vista há áreas que tradicionalmente não foram tratadas em Ocidente. A maneira em que se faz possível a existência da tradição sapiencial em certas sociedades também deveria ser algo a considerar como um valor: em certas sociedades é possível a existência do "sábio". Em outras existe o intelectual ou o cientista mas o "sábio" é levado ao museus. A própria tradição ocidental e democrática tem um "início" na execução de Sócrates. Pode que Sócrates não fosse progressista e alguns autores contemporâneos quase justificam a sua execução. E têm a Hegel como antecedente, quem tenta dar uma dimensão trágica a algo que não tem mais que uma visão: os ignorantes sempre consideram que o seu poder é poder matar. Um vitalismo mortífero. Uma triste ilusão, por outro lado.


A maneira em que se interpreta o estoicismo no mundo muçulmano tem mais a ver com a continuidade da tradição sapiencial que com o aspecto doutrinario que acaba por tomar em Ocidente. Na tradiçao islámica é visto como uma estratégia em acção, da mesma maneira que os cínicos. Não são uma doutrina a imitar mas um caminho numa fase de desenvolvimento. Há apectos equiparáveis nas formas do caminho qalandar e no malamati, que não são compreendidos como fins em si mesmos.


Os livros sobre a cavalaria espiritual são originariamente muçulmanos. Notável é Al Sulami, do século IX. Livros que continuam a ser utilizados. Asín Palacios demonstrou a dívida de Dante com Ibn al Arabi: há fragmentos que são descripções literais que antes aparecem no místico murciano.


Acaba de sair uma publicação sobre a possível autoria árabe do cantar do Mio Cid (a base mítica do nacionalismo espanhol)


http://olevantadordeminas.blogaliza.org/2009/03/07/el-cantar-de-mio-cid-genesis-y-autoria-arabe-de-dolores-oliver-por-catherine-francois-e-santiago-auseron/#comment-23264


Goethe iniciu uma obra teatral intitulada "Muhammad". Escreve no seu diário: "Correm rumores de que o poeta Goethe é muçulmano. O poeta nem afirma nem desminte"


Eu estava presente o ano passado na actuação dos dervixes dançantes no Teatro Colón da Corunha. Ao sairem ouvi um comentário dito em voz alta por alguém que se sentia perturbado e afrentado. Dizia este homem civilizado, num tom pomposo e arrogante:


- Sin duda prefiero el Gregoriano. ¡Y pretenden entrar en Europa!


Mas quem são realmente os europeus?



quinta-feira, 5 de março de 2009

Pensamentos caminhados



Quando o eu chora porque perdeu, a essência ri porque encontrou”
Dito Sarmouni


Ler Espinosa ou Nietzsche tem as suas vantagens mas existem diferentes maneiras de o fazer, naturalmente. Lembro que um dos autores que mais me influenciou foi precisamente Nietzsche, e foi o que me levou a procurar fora dos limites da experiência ocidental. O que comprovei com a passagem do tempo é que algumas pessoas que me tinham acompanhado na reflexão do pensamento, digamos, de onda nietzscheana não compreendiam os meus ulteriores passos. Não compreendiam porque eu me interessava no sufismo, por exemplo. Ou não compreendiam o meu interesse pelo que foi o meu contacto inicial com a obra de Carlos Castaneda. Quer dizer, estavam dispostos a compreender até um ponto: como uma curiosidade pessoal, como parte do que se podia falar com umas cervejas ou para deixar voar a fantasia, quase como uma peculiaridade tolerável em mim que já se passaria. Só que no meu caso era algo essencial. Uma cousa levava a outra, e não era nem foi algo ocasional. Tem a sua lógica interna e há um momento em que as pessoas estamos sós perante as nossas decisões e perante o nosso pensamento. Não há ninguém que nos acompanhe na compreensão do que realmente compreendemos. Por outro lado, deve ser assim. A maioria das pessoas olham para o lado para ver se têm alguém que os acompanhe ou alguém que lhes faça um aceno de compreensão, ou mesmo alguém a quem seguir. Mas um deve seguir o seu próprio caminho. A notícia pela que todos esperamos, o que devemos encontrar, não sairá publicado nos jornais de hoje nem de amanhã. Ninguém virá à nossa casa trazer-nos a esperança cumprida. Por isso lembro a frase do meu avô no seu quarto com noventa e oito anos dizendo:


Toda a vida esperando, esperando quê?


A vida dos seres humanos assemelha-se muitas vezes a uma espera, a um adiamento irracional de que algo definitivo acontecerá em qualquer momento, desde o apocalíptico até Deus sabe que. Mas o tempo passa, simplesmente. E então já somos velhos. Compreendemos algumas cousas que seriam úteis se tivéssemos quarenta ou cinquenta anos menos, e então há que despedir-se, ou despir-se, não sei, do cenário. Cìao.


Uma das questões que está por debaixo disto é o tema das crenças. Para algumas pessoas tudo se reduz a uma questão de crenças. Particularmente certo pensamento filosófico moderno vê a velha filosofia e a sabedoria tradicional como uma língua morta, algo que só se encontra em livros não em pessoas. E se alguém ousa reivindicá-la será situado ao mesmo nível que as religiões ou as opiniões heterodoxas. É uma forma de sofística encoberta, que trabalha com boa consciência. Provavelmente o que esteja em questão seja a próprio sentido da identidade pessoal, do familiar, de preconceitos encobertos que são a sólida base do nosso sentido da existência. As pessoas queremos modificar a realidade com arranjo aos nossos preconceitos, e estamos dispostos a aprender mais com o fim de defendê-los melhor. Mas aprender significa morrer também a tudo o que é comum e familiar. A partir de uma certa altura o novo já não entra. Simplesmente é adaptado e interpretado com arranjo aos nossos interesses. Mesmo que estejamos francamente necessitados, buscamos “causas” que nos justifiquem na nossa clara inadequação.


Se olharmos o sistema cultural no que nos encontramos devemos compreender que ainda estamos sob os efeitos ( e a vivência) dum fundamentalismo político e económico, que causou estragos durante todo o século XX. Ver como as pessoas substituem um fundamentalismo por outro pensando que superam as situações é triste. Basicamente existe uma obcecação ideológica. Tudo é visto desde algum tipo de focagem”ideológica”. A política não é mais do que isso. Muitas pessoas podem lembrar seguramente o significado obsessivo e fanático que o “político” teve durante o passado século. Alguns ainda põem as suas esperanças em algo tão abstrato e carente de conteúdo como os apelos ao “compromisso” político de algum tipo. É uma estafa, nem mais nem menos. Somos estafados porque nos entregamos a uma indulgência que consiste em somar fraquezas. Somamos medos e esperanças. Porque substituímos a nossa intuição pelos nossos medos. E esperamos, contra toda esperança que, por fim, o carrasco nos compreenda. E não há dúvida que até se pode voltar humanitário e matar-nos sem sofrimento. Que lhe custa?


Muhammad Yunus, tal e como vemos no post anterior, exprimia a sua tentativa de convencer ao diretor do banco do su projeto e como gastava energias nisso. Porque se tinha voltado tão importante para ele essa pessoa? Porque queremos convencer a outros do que só podemos fazer nós?. Navegar é preciso e, na verdade, não vale a pena convencer ninguém de nada, porque: que importam os crentes?. As pessoas confundimo-nos sobre isto. Mas o sistema baseia-se nesse tipo de condicionamentos. E as pessoas adulamo-nos pensando que alguém ou algo está “interessado” em nós. Certamente há muitas cousas e pessoas interessantes e interessadas cujo oferecimento consiste numa sedução medida, mas o que está sendo oferecido é algum tipo de promessa velada ou manifesta. Mas a única promessa que vale a pena é a que nos fazemos perante nós mesmos, assumindo a nossa responsabilidade e, sobretudo, assumindo que o valor das cousas depende do que nós ponhamos nelas.


Uma política, um sistema, uma organização, um movimento, podem ser armadilhas que envolvem as pessoas num alheamento de si. Funcionam como supostas garantias de que estamos a fazer qualquer cousa que merece a pena, que o nosso tempo está a ser investido como parte de um negócio rendível. Entretanto surge o auto-engano na procura de signos e indícios que nos prognosticam que o nosso caminho é o correto. Mas realmente não há tais signos. Simplesmente os convocamos, da mesma maneira que nos obcecamos com um número e acabávamos por vê-lo até na sopa. De aí concluímos que sairá na totoloto. Muito do idealismo político e religioso não é mais do que isso.


Realmente não há garantias. Somos as pessoas, individualmente, as que nos temos que fazer cargo da tradição humana. Mas é fácil adular-se pretendendo pertencer a algum tipo de nobre escola de pensamento, ideologia, religião, tradição ou o que for. Encobrimos com o seu prestígio as nossas próprias falências. Recordando um velho dito taoista:


O homem incorreto com o instrumento correto resultado incorreto mas o homem correto com o instrumento incorreto resultado correto”


Quando compreenderemos isto?


É mais fácil deixar-se levar pelas próprias fixações do que engolir certas verdades que nos “deprimem” ou que nos causam inquietação porque existe a falsa convicção do “pensamento positivo” (de origem fundamentalmente norteamericana) que confunde a estimulação do egocentrismo e as emoções fortes e histéricas com a verdadeira positividade que, realmente, pode ser uma ruína para esse negócio.


Enfim, que por hoje me despeço com um antigo poema que fala de morte e despedida, e que foi em mais de um aspeto premonitório. Deveríamos aprender a nos despedir, a nos despir dos atos e da nossa vida e, recordando ao velho Don Juan de Castaneda, ter a nossa morte como conselheira.



ADEUS, AMIGOS.


adeus amigos e adeus poemas
a tarde cai tão leve e tão sincera
que tiro o lenço duma lágrima serena
e finjo um sudário de flores e de areias


para outros mares navega o ataúde
barco puro de sonhos e de versos
e eu sinto o velho cadaleito
florir nas sobrancelhas e nas veias


adeus poemas e adeus amigos
pouco dizem as pinturas e as palavras
se o silêncio das tardes mais antigas
não soubermos ouvir sem partituras


deixemos que o vento traga novas
e rosas de inverno sem melancolia
deixemos amigos e poemas fóra

fora da ilusão e da sagaz mentira
diga-se um adeus sincero e vivo
de amor e morte por igual nascido

adeus poemas, adeus amigos.


2 Agosto, 2005