quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Bom Natal, amigos.


Queridos amigos,


quero-vos desejar um Feliz Natal e que o 2010 seja bom para todos. Que isto seja um abraço para ausentes e presentes, para os que podem estar junto às suas família como para aqueles que se encontram distantes.


E que o verdadeiro espírito do Natal encontre um lugar no vosso coração.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

A noite de Rustam Çiçek I: cometas e noites


Durante semanas Rustam Çiçek desaparecia de Istambul. Era uma incógnita saber os seu lugares, as suas paragens, onde pousaram os seu olhos, em que desertos e poeiras tinha deambulado. Secretamente desaparecia. Tão só Ibrahim parecia intui-lo e, como gatos em harmonia, desapareciam ambos, mas em diferentes direções . Dizia-se que Rustam se perdia na sua Anatólia natal, que deambulava pelos caminhos perdidos das pequenas aldeias e vilas alonjados da civilização para rencontra-se consigo próprio, para além das identidades que os "cidadãos"se empenhavam em atribuir-lhe e que, afinal, começavam subtilmente a pesar sobre a sua consciência. Era então o momento de apanhar os caminhos de poeiras e sóis, de chuvas e neves. Como um rei disfarçado de mendigo, Rustam Çiçek sentia a verdadeira liberdade das planícies e dos campos, das devastadas pedras da Capadócia, sentia as suas mãos e os seus pes ao compasso do seu bordão como um ancião pastor da antiga Grécia. Os versos surgiam então nos sorrisos das raparigas descalças das terras nuas do interior. A pobreza que a civilização avara e paranoica se esforçava por eliminar da sua consciência refulgia ali na sua pureza essencial. Era a riqueza essencial do ser: o seu riso vivo e trascendente. Então recordava as palavras de Saadi de Shiraz, o velho e generoso mestre persa:
- Tão avaros que se o sol caisse no seu prato nunca mais ninguém veria a luz do dia.

E ria só, de aquela maneira como só podem rir as crianças e os loucos. Ele, o viageiro perdido da sua terra natal. Então surgia o breve poema:


Os teus olhos, irmã

nasceram na noite primigénia

ambos seremos poeira como as pedras

e as areias de Anatólia

mas os teus olhos perdurarão

e o meu amor perdurará

como perduram pedras e

poeira em Anatólia.


Ou também:


O teu sorriso iluminou o sol

entristecido nas nuvens,

rapariga dos astros

E agora os teu cabelos ardem

e o vento sussurra:

- Dança, dança.



E Çiçek podia iniciar um baile no Sol-Pôr, não uma dança frenética mas pausada e ágil, cheia de graça e harmonia. Era uma dança hierática e sinuosa, como um estranho mimo que se movesse por entre os espectros da Guerra de Troia.


O espectáculo de um louco solitário e livre dos simples e honestos costumes dos "cidadãos".


Podia ouvir então "Cometas e noites" ou "Noites e noite" (Shahâbhâ va shabhâ), do poeta persa.


Az zolmat-e ramide khabar midehad sahar
shab raft o bâ sepide khabar midehad sahar
az akhtar-e shabân rame-ye shab ramid o raft
az rafte o ramide khabar midehad sahar



De uma rebelião contra o obscuro fala a alva

a noite foi-se e com a aurora fala a alva

a multidão assustada vaga na longa noite

a estrela do pastor foi-se embora

e de um obscuro temor ao longe fala a alva.






quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Identidade

Livraria Lello, no Porto

Gostaria de lembrar uma pequena história na que me vi envolvido há uns cinco anos quando se celebrou um simpósio na cidade de Porto dedicado a José Marinho. Eu apresentava uma comunicação intitulada Ética, paideia e anagogia que versava sobre a perspectiva que Marinho dava à pedagogia da filosofia. Para ele havia uma eiva tanto na tradição procedente da teologia como na ciência moderna e tentava restaurar a noção de magistério espiritual e iniciação. Ele foi o filósofo português e um dos europeus mais profundos e mais "filósofo", não há duvida.

Pois bem, eu tinha enviado um título provisório que tratava sobre os relacionamentos dos diversos "platonismos" e o pensamento de Marinho. Algures fazia referência ao sufismo e aos platónicos da Pérsia, também aos Ishraquiyum ou filósofos orientais do sohravardismo mas depois não falei disso. As informações dos ponentes eram porém que alguém procedente da Galiza ia falar sobre isso.


Eu devia dar a minha conferência à tarde, depois do almoço. Os conferenciantes fomos convidados, não eramos muitos, e tomamos uns vinho do Porto numa salas pertencentes a um antigo edifício da Universidade. Durante mais de duas horas falamos e intercambiamos pareceres de diverso tipo até que chegou o momento de voltar para a sala de conferências. Eu era o primeiro em falar. No passeio até a Faculdade encontrei-me à minha beira com um dos conferenciantes, um padre muito fervoroso nas suas convições. Começamos a falar e depois de um tempo disse-me:


- Parece que vai falar um que vem da Espanha sobre as relações do pensamento de Marinho com o pensamento islâmico. Que terá a ver uma cousa com a outra?


- Sim, isso parece, respondi. E sorri.


E continuamos a falar sobre diversas questões não estritamente filosóficas. Por exemplo, este homem estava muito interessado por saber quem era um acompanhante de um amigo meu, aliás o editor das obras completas de José Marinho. Não entrava dentro dos seus cânones académicos, provavelmente, um homem de grandes barbas e aparências boémias, Fritz, meio alemão nascido em Angola e que acompanhava ao seu amigo da adolescência no país africano simplesmente por interesse pessoal, sem mais assuntos.


Chegou o momento de entrar na sala e não sei qual seria a face deste bom padre quando fui apresentado como o galego, o único "estrangeiro" ali presente, e que tanto incitava à sua curiosidade.


Durante mais de quinze minutos foi falando comigo e nunca reparou que eu podia ser esse homem que tanto o preocupava!


Uma vez Nasrudin entrou numa loja e o homem disse-lhe:


- Bom dia!

- Um momento, disse-lhe Nasrudin, o senhor já me tinha visto antes?

- Não, nunca.

- Então como sabe que sou eu?