quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Bom Natal, amigos.


Queridos amigos,


quero-vos desejar um Feliz Natal e que o 2010 seja bom para todos. Que isto seja um abraço para ausentes e presentes, para os que podem estar junto às suas família como para aqueles que se encontram distantes.


E que o verdadeiro espírito do Natal encontre um lugar no vosso coração.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

A noite de Rustam Çiçek I: cometas e noites


Durante semanas Rustam Çiçek desaparecia de Istambul. Era uma incógnita saber os seu lugares, as suas paragens, onde pousaram os seu olhos, em que desertos e poeiras tinha deambulado. Secretamente desaparecia. Tão só Ibrahim parecia intui-lo e, como gatos em harmonia, desapareciam ambos, mas em diferentes direções . Dizia-se que Rustam se perdia na sua Anatólia natal, que deambulava pelos caminhos perdidos das pequenas aldeias e vilas alonjados da civilização para rencontra-se consigo próprio, para além das identidades que os "cidadãos"se empenhavam em atribuir-lhe e que, afinal, começavam subtilmente a pesar sobre a sua consciência. Era então o momento de apanhar os caminhos de poeiras e sóis, de chuvas e neves. Como um rei disfarçado de mendigo, Rustam Çiçek sentia a verdadeira liberdade das planícies e dos campos, das devastadas pedras da Capadócia, sentia as suas mãos e os seus pes ao compasso do seu bordão como um ancião pastor da antiga Grécia. Os versos surgiam então nos sorrisos das raparigas descalças das terras nuas do interior. A pobreza que a civilização avara e paranoica se esforçava por eliminar da sua consciência refulgia ali na sua pureza essencial. Era a riqueza essencial do ser: o seu riso vivo e trascendente. Então recordava as palavras de Saadi de Shiraz, o velho e generoso mestre persa:
- Tão avaros que se o sol caisse no seu prato nunca mais ninguém veria a luz do dia.

E ria só, de aquela maneira como só podem rir as crianças e os loucos. Ele, o viageiro perdido da sua terra natal. Então surgia o breve poema:


Os teus olhos, irmã

nasceram na noite primigénia

ambos seremos poeira como as pedras

e as areias de Anatólia

mas os teus olhos perdurarão

e o meu amor perdurará

como perduram pedras e

poeira em Anatólia.


Ou também:


O teu sorriso iluminou o sol

entristecido nas nuvens,

rapariga dos astros

E agora os teu cabelos ardem

e o vento sussurra:

- Dança, dança.



E Çiçek podia iniciar um baile no Sol-Pôr, não uma dança frenética mas pausada e ágil, cheia de graça e harmonia. Era uma dança hierática e sinuosa, como um estranho mimo que se movesse por entre os espectros da Guerra de Troia.


O espectáculo de um louco solitário e livre dos simples e honestos costumes dos "cidadãos".


Podia ouvir então "Cometas e noites" ou "Noites e noite" (Shahâbhâ va shabhâ), do poeta persa.


Az zolmat-e ramide khabar midehad sahar
shab raft o bâ sepide khabar midehad sahar
az akhtar-e shabân rame-ye shab ramid o raft
az rafte o ramide khabar midehad sahar



De uma rebelião contra o obscuro fala a alva

a noite foi-se e com a aurora fala a alva

a multidão assustada vaga na longa noite

a estrela do pastor foi-se embora

e de um obscuro temor ao longe fala a alva.






quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Identidade

Livraria Lello, no Porto

Gostaria de lembrar uma pequena história na que me vi envolvido há uns cinco anos quando se celebrou um simpósio na cidade de Porto dedicado a José Marinho. Eu apresentava uma comunicação intitulada Ética, paideia e anagogia que versava sobre a perspectiva que Marinho dava à pedagogia da filosofia. Para ele havia uma eiva tanto na tradição procedente da teologia como na ciência moderna e tentava restaurar a noção de magistério espiritual e iniciação. Ele foi o filósofo português e um dos europeus mais profundos e mais "filósofo", não há duvida.

Pois bem, eu tinha enviado um título provisório que tratava sobre os relacionamentos dos diversos "platonismos" e o pensamento de Marinho. Algures fazia referência ao sufismo e aos platónicos da Pérsia, também aos Ishraquiyum ou filósofos orientais do sohravardismo mas depois não falei disso. As informações dos ponentes eram porém que alguém procedente da Galiza ia falar sobre isso.


Eu devia dar a minha conferência à tarde, depois do almoço. Os conferenciantes fomos convidados, não eramos muitos, e tomamos uns vinho do Porto numa salas pertencentes a um antigo edifício da Universidade. Durante mais de duas horas falamos e intercambiamos pareceres de diverso tipo até que chegou o momento de voltar para a sala de conferências. Eu era o primeiro em falar. No passeio até a Faculdade encontrei-me à minha beira com um dos conferenciantes, um padre muito fervoroso nas suas convições. Começamos a falar e depois de um tempo disse-me:


- Parece que vai falar um que vem da Espanha sobre as relações do pensamento de Marinho com o pensamento islâmico. Que terá a ver uma cousa com a outra?


- Sim, isso parece, respondi. E sorri.


E continuamos a falar sobre diversas questões não estritamente filosóficas. Por exemplo, este homem estava muito interessado por saber quem era um acompanhante de um amigo meu, aliás o editor das obras completas de José Marinho. Não entrava dentro dos seus cânones académicos, provavelmente, um homem de grandes barbas e aparências boémias, Fritz, meio alemão nascido em Angola e que acompanhava ao seu amigo da adolescência no país africano simplesmente por interesse pessoal, sem mais assuntos.


Chegou o momento de entrar na sala e não sei qual seria a face deste bom padre quando fui apresentado como o galego, o único "estrangeiro" ali presente, e que tanto incitava à sua curiosidade.


Durante mais de quinze minutos foi falando comigo e nunca reparou que eu podia ser esse homem que tanto o preocupava!


Uma vez Nasrudin entrou numa loja e o homem disse-lhe:


- Bom dia!

- Um momento, disse-lhe Nasrudin, o senhor já me tinha visto antes?

- Não, nunca.

- Então como sabe que sou eu?

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Idries Shah


Hoje há treze anos que morreu Idries Shah. Sempre lembro esta data, que aliás tenho ligada também ao nascimento de Herberto Helder e Paul Celan. De maneira que hoje queria recordar a este homem que supus para mim a abertura a uma experiência de aprendizagem que não tem comparação possível com qualquer outro autor prévio, que eu tivesse lido. A sua influência foi decisiva e para o resto da minha vida.

Eu era estudante em Santiago quando entrei um dia na livraria Folhas Novas. Era um habitual da mesma, sobretudo depois de que me tivessem pagado a bolsa. Aquele dia encontrei num lugar inabitual e meio escondido um livro intitulado Aprender a aprender, da editora Paidós. Fiquei surpreendido pelo título, folhei o livro e comprei-no mas ficou durante meses numa gaveta. Quase um ano depois comecei a lê-lo e já não parei de procurar os textos de Idries Shah.

Cinco anos depois de tudo aquilo encontrei com o seu irmão, Omar Ali Shah, a quem "abri o meu coração". E uns meses depois, em Novembro, morria Idries Shah. Lembro que eu me encontrava em Lisboa naquela época. Não soube da notícia até Maio do ano seguinte numa viagem que fiz à Corunha e experimentei uma especie de choque.

Enfim, que posso dizer de Idries Shah? Que leiam os seus livros. Não encontrarão a um "oriental" ou a um "guru" ao estilo do orientalismo esotericista. Encontrarão um homem que transmite factos, informação e sabedoria para que as pessoas possam tecer com os seus próprios esforços um caminho de evolução. Um elemento essencial é como as pessoas podem utilizar tudo isso para conseguir ter uma relação de aprendizagem com um mestre. Ele fez um trabalho preparatório e criou um clima para a aceitação de ideias que de outro modo não poderiam ser digeridas.


Como ele costumava dizer: " A cor da água depende do copo que a contém".


Não deveriamos ficar a comparar copos mas aprender a beber a água ali onde está. Como reza no seu epitáfio:


"Não repares na minha forma exterior mas apanha o que está na minha mão"

domingo, 22 de novembro de 2009

Carta a um amigo


Querido amigo:

compreendo as tuas inquietações sobre o devir da humanidade. Com certeza são as mesmas que as minhas. Provavelmente no íntimo desenvolver-se do quotidiano muitas pessoas se ponham essas mesmas questões que tu tens. Como agir? Que fazer?. Há uma estranha inércia dos tempos, por vezes parece que ninguém tem interesse em nada, que tudo é um ir cobrindo aparências, à espera do seguinte protocolo burocrático, como se a vida fosse simplesmente uma cousa atrás da outra. Mas que resposta posso dar-te? Não tenho nenhuma. Na realidade não tenho uma ideologia qualquer, não sou galeguista nem nacionalista nem iberista nem europeísta. Não posso entusiasmar-me com as "novas" políticas e não acredito que os jornais me tragam a "Boa Nova". Considero isso (as diferentes etiquetas ideológicas) falsos problemas que me evadem do meu plano de imanência. Devemos ser realistas com relação ao nosso lugar no mundo. Sou uma pessoa normal, que dá aulas de secundária de algo pouco prático (filosofia) e tenho uma família com a que procuro conviver em harmonia. Tenho interesses culturais e humanos de autoformação, procuro desenvolver o meu civismo dentro de uns limites comuns e não destaco por nada especial. A máxima incidência pública são blogues entre amigos. De maneira que a questão sobre projectos e planos de futuro de carácter global são grandes demais para mim. Vou vivendo, simplesmente. Acredito que a riqueza que posso compartir com outras pessoas é este ir vivendo sob a consciência tácita de uns valores essencias que eu chamo de Tradição. É uma preocupação muito pragmâtica que não me permite envolver-me em Ideais porque tento aprender diariamente a ser um ser humano no contato diário com outros seres humanos: e isto é muito mais importante e provavelmente marcante que teorizar sobre grandes planos. Digo isto com todas as limitações inerentes a uma afirmação deste tipo.
Se conservamos o nosso ideal interno na nossa imanência poderemos fazer realmente boas cousas, tal e como o homem verdadeiro dos taoístas. Significa um saber fazer sem grandes planos, ligado ao desfrute dos acontecimentos e dos encontros. São os políticos, intelectuais, etc. os que carregam com o peso de "representar" a outros. Considero que a única política verdadeira está em apresentarmo-nos como seres humanos desde a nossa experiência real, não imaginada ou desejada. Conheci um velho mestre (Omar Ali Shah) que punha o exemplo da "gota de azeite". Sobre um papel pomos diversas gotas cá e lá. Depois de um tempo o papel absorve o azeite que se vai extendendo até entrar em contato. Não há luta pelo controle, há um desenvolvimento progressivo e harmónico. Em vinte anos as mudanças podem ser decisivas e quase não teremos reparado nisso, como ver a nossa fotografia de um tempo atrás. É o que se conhece no sufismo como "técnicas do tingido". Por isso é tão diferente a sabedoria oriental e tão necessária hoje. Nós podemos construir isso mas não é preciso lutar contra nada, simplesmnete temos que nos esforçar em experimentar e aprender de maneira que o "sentido comum" se torne algo concreto e efectivo. De súbito compreendemos que ver com claridade só nos obriga a ter um pouco de esse tão denostado sentido comum. Devemos deixar de ser heróis, esforçados prometeus. Esse tempo já passou.Não há melhor exemplo que a experiência budista neste sentido, não tenho a menor dúvida. Provavelmente a experiência civilizadora mais impressionante da história humana.
Ressumiria dizendo: deixemos de fazer planos, vivamos incrementando as nossas possibilidades, as nossas experiências mas abandonemos toda ideia de controle e dirigismo: na verdade não podemos controlar nem dirigir nada.

Só um poema final dos índios da pampa argentina:


Nuestra llanura.

Esta es, hermanos, nuestra tierra ancha
donde nada se detiene, donde todo pasa,
y el viento no duerme y el horizonte anda

Esta es, hermanos, nuestra tierra ancha,
vivimos en toldos. Cuando el tiempo cambia,
cambiamos los toldos. Así es nuestra vida.

Esta es, hermanos, nuestra tierra pampa
No es tierra estrecha, la tierra es bien ancha.
Por mucha que quieran a todos alcanza.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Crenças


Contrariamente ao que se pensa as religiões não são algo fixo, estabelecido e dogmático. Quer dizer, podem usurpar essa função mas, com que direito?. Sempre me surprendeu a maneira em que Ocidente cedeu terreno perante o direito eclesial e romano. Não se trata de ser isto ou aquilo mas de pensar o seguinte:



Qual é a legitimidade de este ou de aquele para dizer que eles são os únicos representantes de tal ou qual religião?



Por outro lado, que é relamente a religião?. Porquê aceitar uma determinada visão?. Em que medida todos somos responsáveis da nossa tradição e não podemos desentender-nos dela?

De maneira que, por exemplo, porquê rejeitar ou aceitar algo sem termo-nos posto a questão prévia de uma verdadeira investigação? Se Muhammad dizia que o Corão tinha sete níveis diferentes de significação segundo o desenvolvimento da pessoa, que quer dizer com isso?



E se, por exemplo, a tradição budista acredita na reencarnação, que significam estes versos de Nagarjuna, um dos mais prominentes budistas da tradição Mahayana:



Supõe-se que a pessoa se reencarna

Mas quando um procura essa pessoa

Não pode encontrá-la, nem nos seus cinco agregados

nem no âmbito dos sentidos, nem dos elementos

Então, quem é o que se reencarna?



Damos por feitas as cousas como se estas tivessem uma identidade estável, de uma vez por todas. Que interessante que estas mesmas considerações as possamos encontra em Spinoza, Hume ou Nietzsche.



Somos o que comemos


(Provérbio)

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Três médicos e um funeral

Summer Night de Liang Feng

O imperador da China encontrava-se à beira da morte. Os sábios e médicos da corte procuravam uma solução mas o homem piorava. A situação era políticamente instável e alguns ministros tomaram a decisão de procurar um médico fora dos muros da corte. Decisão muito arriscada mas que foi necessária dada a difícil situação que atravessava a nação.

Pouco depois os espiões do reino chegavam com a informação de que um escuro médico de um bairro da cidade de Pekim podia ser o homem que precisavam. - Que venha imediatamente- disse o primeiro ministro. Já tinha que estar aqui! E aí podéis ver um homem de mediana idade, de cabelos grisalhos, aspeito singelo e modos naturais, sem afectação alguma. Era como se a presença na corte o intimidasse mas, ao meso tempo, não lhe causasse impressão. Estranho paradoxo que tem uma explicação: ao seu lado os homens pareciam vulgares e isso avergonhava-o. Era como se interiormente disesse: - Desculpem, não foi ideia minha o de estar aqui. Não quero incomodar os seus assuntos.

Por outro lado podia sentir a inveja e a expectação malevolente dos cortesãos. Bem, o caso é que o médico achegou-se ao imperador e deu-lhe a beber uma poção, que renovou durante três dias.

O imperador curou totalmente. E foi uma felicidade mesmo para os invejosos que viram que as suas cadeiras já não perigavam.
O imperador falou para o médico:
- Que notável que um homem do teu talento só seja conhecido num pequeno bairro de Pekim. Poderias explicar a que se deve a tua discrição?
- Veréis, majestade- disse o médico. Eu só sou o mais pequeno de três irmãos. E todos somos médicos.
- Quem são então os teus famosos irmãos?-disse o imperador. - Majestade, desculpe, mas não está a compreender o que lhe estou tentando dizer. Os meus irmãos, dos que eu aprendi, são menos conhecidos do que eu. O do meio só é conhecido na nossa rua. E o mais velho, o verdadeiro sábio, só é conhecido na nossa casa. Fora da nossa casa ninguém pensa que saiba nada de medicina. Assim é a nossa vida. O imperador deu ordem de que trouxessem a esse médico desconhecido e oculto para o seu palácio. Queria tê-lo ali ao seu serviço para sempre.

Mas não houve sorte, pois o imperador foi informado de que o médico oculto acabava de falecer. Todos olharam para o irmão, ainda presente. Este falou: - Agora compreendo as palavras do meu irmão quando dizia que na verdadeira medicina era o médico o que pagava.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Tong Len (tomar e dar)

O caminho interior segue uma forma inversa da reivindicação. De aí que possamos dizer sem dúvida:

"O verdadeiro arrependimento é a expressão de que já fomos perdoados"



Quando seguimos a ética essencial compreendemos que não temos direito a exigir nada. A questão mais bem é que se nos aceite o nosso serviço. Devemos sentir-nos agradecidos de que as nossas intenções realmente possam ser úteis.


A consciência do próprio mérito avergonha e denota hipocrisia.


Sobre as justificações poderiamos dizer:


O que actua bem não tem justificação e o que actua mal melhor que não se justifique.



Um conto





Conta a tradição tibetana que Gueshe Chekawa foi a casa de uma família e viu um texto escrito pelos Gueshes Kadampa. O texto dizia:


"Oferece a vitória e o proveito aos demais e toma sobre ti a derrota e a perda"



Chekawa ficou muito surpreendido por estas duas linhas e decidiu indagar e procurar alguém que lhe pudesse aclarar o seu significado. Ele pensava que devia envolver alguma sabedoria oculta.


Encontrou que esse ensinamento procedia dos Oito versos do treinamento mental de Langri Tangpa mas ele já estava morto.


Procurou, procurou e procurou...E encontrou a Gueshe Sharawa, que dava ensinamentos tradicionais sobre ética e moralidade. Chekawa disse-lhe:


- Os vossos ensinamentos não me inspiram e eu queria que me mostrasseis a relação entre os versos Kadampa e os vosos ensinamentos.


- Que versos são eses?- perguntou Sharawa


- Oferece a vitória e o proveito aos demais e toma sobre ti a derrota e a perda- disse Chekawa.


- De quem é isso? - perguntou Sharawa


- De Gueshe Langri Tangpa, mas ele está morto- disse Chekawa. Es capaz de pôr isto em prática? É isto um ensinamento puro do Dharma?- continuou.


- Não importa se se pode pôr em prática ou não porque isso depende dos indivíduos. Uns podem e outros não podem, mas sem pôr isto em prática é impossível conseguir a Iluminação suprema.


Desde então Gueshe Chekawa recebeu os ensinamentos do Lo-Jong (treinamento mental) de Gueshe Sharawa durante treze anos.


Gueshe Sharawa, que passava por ser um simples mestre de moralidade, mas que na verdade era um consumado mestre na prática de Tomar e Dar (Tong Len), conduziu Chekawa à suprema Iluminação.


Mas foi Guesshe Chekawa quem divulgou o segredo (com as suas práticas) para que todos aqueles com boa vontade se pudessem beneficiar:


"Oferece a vitória e o proveito aos demais e toma sobre ti a derrota e a perda"

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Humanidade

Mãe amorosa


Ainda que para alguns se trate de um tópico tratarei o tema telegraficamente. Há um atentado contínuo perante o feminino e a feminização. Gosto desta frase de Ibn Arabi:



"Todo lugar não feminizado não é digno de confiança"



Provavelmente a forma de idolatria do poder e do control , da guerra e da destruição seja algo pobremente masculino. O masculino deve rendir serviço e proteção ao feminino. Em certo sentido o masculino é o exotérico e o feminino é o esotérico.


Quando isto não acontece, quando o essencial não é respeitado e amado, quando há competitividade e injustiça, simplesmente se está a matar a essência da criatividade. Um homem (ou uma mulher) se volta estéril e louco se não compreende isto.


Como dizia um índio sioux.


"O nossos melhores guerreiros eram de uma delicadeza e uma cavalheirosidade quase feminina no povoado mas mencionar o seus nomes era o horror dos inimigos"


Mas quais são os modelos baixo o actual sistema de domesticação, que não de cultura?


sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Diferença e normalização

Roda do Dharma

O pensamento e a estrutura essencial da filosofia autêntica é unitiva mas dentro de um paradoxo. É uma unidade da experiência e da essência, não da forma. A tentativa de construir analogias, de fazer que as cousas se pareçam e se identifiquem é uma tendência humana compreensível mas é também uma forma de limitar a compreensão

É uma tendência humana estabelecer etiquetas e homologias. Para algumas pessoas não ter algo classificado ou situado é todo um problema em si mesmo.

Existe a ideia de que a comunicação se produze homogeneizando mais. De esta maneira para muitos "as minorias" são um "problema". Se só tivermos uma língua a comunicação seria mais fácil, pensam alguns. O que não pensam é que tipo de incomunicação foi necessária para produzir a imposição de uma única língua.

Tudo isto está relacionado com o processo normalizador do mundo moderno. Normalizar é reduzir a estruturas mensuráveis e homogêneas a diversidade intrínsica do real. Existe uma ilusão de totalidade e universalismo abstracto que literalmente exclui, elimina e cega às pessoas obrigando-as a ter como princípios absolutos umas bases economicistas e predatórias. O roubo e o assassinato são, desde esta perspectiva, uma solução.

Em todo o caso a realidade é a que é e não a que gostariamos que fosse, com toda a sua diversidade e com todos os seu direitos inerentes. E por mais que alguns, ainda que sejam muitos, se empenhem em dizer como são as cousas, as cousas simplesmente são sem conotações e valores.

Sempre pergunto aos meus alunos, em algum momento, qual é o sentido de jogar limpo num jogo. Que se ganha e que se perde se o não fizermos.

A pergunta tem miga. É necessário saber de economia, o básico.


Em última instância a ética é uma lógica pura. Como disse um mestre tibetano que conheci:


- Chegamos à iluminação por pura lógica.


- E o amor, a compaixão, e tudo isso- perguntou alguém


- Oh!, isso é a lógica mais estrita e pura.


E Sócrates não pensava diferente.



quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Intenção e acontecimento.

Carl Emile Mucke

O Princípio de Incerteza de Heisenberg não deixa de ser uma fonte de inspiração filosófica. A ideia de que a energia que suministramos a um sistema modifica o estado do mesmo e que pelo tanto não o podemos conhecer de maneira objectiva sempre me lembra uma frase de Kant no início da sua Antropologia, que cito de memória:


"O problema de estudar o ser humano é que este modifica a sua conduta desde o momento em que sabe que está sendo observado"

Isto tem aplicações também no facto da auto-observação, que é problemâtico.


Poderiamos dizer que há algo subtil chamado intenção e que, como no caso da luz, parece conhecer con anterioridade se a sua manifestação deve ser ondulatoria ou corpuscular.


Isto relaciona-se com a maneira de transmitir o conhecimento essencial que não segue um processo linear. O mestre fala de cebolas ou põe exemplos onde se fala de cores, mas então muda e passa a falar do gato de Nasrudin e tudo dentro de um discurso simples e facilmente compreensível num sentido superficial. Há pausas, gestos. Sucedem-se perguntas e respostas que parecem seguir um sentido convencional mas há toda uma série de acontecimentos que seguem um afinamento que depende da energia do contexto. As cousas realmente acontecem por algo. A ideia da casualidade é aqui supersticiosa. Há realmente uma causalidade funcionando num nível mais profundo e multidimensional do que parece.


Este é o motivo de que um livro possa ter outras funcionalidades que não resultem óbvias. Ou um objecto ou uma frase. Ou um comportamento. É como se falássemos para os presentes e para os ausentes, para o que há e para o que pode haver. Ás vezes sentimos que simplesmente temos que fazê-lo. Haverá um efeito em algum lugar. Assim o sentimos. Devemos actuar, sem poder explicar demasiado. De aí a importáncia de não fazer juízos precipitados.

Sobre o experimento de Robert G. Jahn clickar aqui:








"Se nós deixarmos de dançar o sol deixará de sair pelo horizonte", dizem algumas tribos. E dizem a verdade.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Transferência


Algumas vezes tenho ouvido a crítica que põe o facto de não ser necessário buscar o conhecimento em fontes orientais. Que a riqueza do pensamento e da tradição ocidental é suficiente por si mesma. Isto deve-se a que não falamos das mesmas cousas e dos mesmos significados. Quando com vinte e três ou vinte e quatro anos comecei a compreender que Nietzsche, Spinoza, Heidegger ou Kant não eram completos não o pensava só desde a perspectiva teorética. Era a sensação vital e existencial de que essas pessoas não eram realizadas. Em certo modo viviam de ideais. Poderia dizer-se que a eiva do pensamento ocidental é o seu idealismo.

Paralelamente a isso pode ver-se como se trata de um experimentalismo carente de sabedoria: toda a psicologia desde Freud em adiante mostra-o claramente. A psicanálise carrega um sentimento de culpabilidade e uma linguagem nefasta para o ser humano. Por um lado dá mas por outro tira. Se analisarmos a figura de Freud vemos como se transfire toda uma psicologia da perda e da culpa aos seus seguidores. Há dogmatismo, irracionalismo e obcecação com o tema sexual. Há sofrimento gratuíto. Há também ignorância sobre o ser humano.

Estas são afirmações fortes mas sei do que falo. O certo é que não se pode improvisar uma tradição nem descobri-la através do esforço e a heroicidade do século XIX e XX. O homem existe desde muito antes e não foi inventado pela revolução científica moderna ainda que, às vezes, pareça pretendê-lo.

A sensação que eu tinha é que essas pessoas andavam buscando mas ainda não encontraram. Comprometiam a outros e negavam as possibilidades que outros mais sábios lhes podessem oferecer na abertura de um caminho para a realização. Muitos só queriam defender as suas teorias contra outras teorias. Reconheciam a sua ignorância para a continuação comportar-se e dogmatizar sobre o divino e humano como se fossem deuses. Existia e existe uma inconsciência nefasta dos próprios limites. Sempre falam dos problemas que solucionam mas não dos que causam. É a mesma história que se nos falam da civilização ocidental mostrando-nos o Parlamento inglês e a Ilustração e obviando o colonialismo, o capitalismo e os massacres e genocídios do S.XX.

Mas o surpreendente é que esta crítica é assumida por muitos ocidentais para criar um malestar ou uma consciência de culpa sem assumir mais nada. Por exemplo, aceitar que os outros podem ter algo que ensinar também. Que não são só uns coitados e umas vítimas. Que podem ter um valor superior. Sim, a palavra própria é superior.

O conhecimento que é superior é aquele que dá razão autêntica da existência humana e tem os seus próprios profissionais como qualquer cousa na vida. Se das bases estabelecidas no S.XVII para o estudo da natureza se chega à bomba atómica, das bases estabelecidas muito antes sobre o mêtodo e a sabedoria se chega ao verdadeiro ser humano. Isto está plasmado de jeito ininterrumpido até a actualidade no Oriente. E se agora se encontra em Ocidente é justo reconhecer esta dívida com equidade.

Eu tenho uma frase sobre a maneira em que se podem assumir "as sabedorias" de todos os lugares e tempos para a construção de algo que é tão antigo como o ser humano.


"Se leste a Nietzsche e chegaste à Tradição essencial, então realmente leste a Nietzsche
se leste a Nietzsche e es nietzscheano só te estás justificando"

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Expiação

Cabanas, ontem.

Existe uma forma de falsa humildade que padecemos e que consiste em não tomar da vida o que ela, gratuitamente, nos oferece. É como se não nos sentíssemos dignos. Mas é uma humildade que nos dana. Pode que inconscientemente sintamos uma ligação ou uma fidelidade a algo que sofre, padece ou alguém que sofreu ou padeceu. Pode que digamos: como eu vou ser feliz se ao meu redor acontece isto ou aquilo, se o meu pai ou minha mãe ou meu irmão sofreram isto ou aquilo e, então não nós abrimos, ficamos como a flor que tem medo de se abrir. Há algo no interior que nos leva os olhos ao chão.

Ou pode que nos sintamos sempre por debaixo e que seguir o nosso próprio destino seja trair a algo ou alguém. Poderiamos chamar a tudo isso as fidelidades ocultas.


Há outra maneira de responder, de assumir a própria voz e a responsabilidade:


"Tomo o meu e o vosso sofrimento, tomo o que vos custou a existência, tomo a vossa dor e honro o vosso esforço e aceito o vosso sacrifício e desfruto da minha felicidade em honra a tudo isso"


Não podemos "justificar" sem mais o que aconteceu. Há, aqui e agora, uma carga de redenção que une passado, presente e futuro. Não permitamos que tudo o que foi tenha sido em "vão".


E isto é uma profunda, muito pessoal maneira de dizer: "Gracias", "Obrigado"


O português e o espanhol são aqui perfeitamente complementares.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Amores eu tenho


Tive a sorte de conhecer ha já muitos anos a Natália Correia em Santiago. Ela era uma grandíssima poeta. Tinha sido convidada para falar sobre a sua visão da poesia e da literatura na Faculdade de Filologia e fez uma enérgica defesa da "poética" como a essência da revolução humana. Ela tinha publicado recentemente um livro intitulado "Todos somos hispanos" e reivindicava uma vocação cultural peninsular. Ela tinha muito claro o vínculo essencial de Portugal com a Galiza.

Casualmente essa noite encontrei com ela enquanto eu bebia um vinho do Porto num pub da zona velha de Santiago. Ela reconheceu-me ao instante e lembrou-se de uma pergunta que eu lhe tinha feito sobre a Galiza e Portugal. Ela disse-me:


- Eu percebi muito bem a sua pergunta mas fui diplomata de mais, eu estava "rodeada".


Piscou-me um olho, deu-me dous beijos e disse-me:


- Quando vaia a Lisboa, pergunte por mim!


Eu ri e imaginei-me chegando a Lisboa e perguntando a qualquer pessoa por Natália. Era engraçado. Mas era tão popular que até podia dar certo.


Aqui deixo o duo de Natália Correia e Amália Rodrígues, que versionou este poema do trovador galego do sêculo XII, Pero Meogo. Natália é a mãe e Amália a filha.




- Digades, filha, mha filha velida

porque tardastes na fontana fria.

(- Os amores ey.)


- Digades filha, mha filha louçana

porque tardaste na fria fontana.

(- Os amores ey.)


- Tardei mha madre na fontana fria

cervos do monte a augua volvian.

(- Os amores ey.)


- Tardei mha madre na fria fontana

cervos do monte volvian a augua.

(- Os amores ey.)


- Mentir, mha filha, mentir por amigo!

Nunca vi cervo que volvess' o rio.

(- Os amores ey.)


- Mentir, mha filha, mentir por amado!

Nunca vi cervo que volvess' o alto.

(- Os amores ey.)



(Pero Meogo, 1192)










Responde, filha, formosa filha:

porque tardaste na fonte fria

Amores eu tenho!


Filha, formosa filha, responde:

porque tardaste na fria fonte

Amores eu tenho!


- Tardei, minha mãe, na fonte fria,

Cervos do monte a água volviam.

Amores eu tenho!


Tardei, minha mãe, na fria fonte;

Volviam a água cervos do monte.

Amores eu tenho!


- Que escondes,filha, por teu amigo?

cervos do monte não volvem o rio.

Amores eu tenho!


Por teu amado, filha, que escondes?

o mar não volvem cervos do monte.

Amores eu tenho!


(Natália Correia, in A Defesa do Poeta)

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Cousas curiosas

Parece que no povo Ianomami há uma forte violência sobre as mulheres. O curioso é que elas consideram que se um homem não lhes bate é porque não gosta dela. É um comportamento que nos resulta chocante quando o vemos numa sociedade primitiva.
O certo é que a vulgaridade de muitas relações mede-se por este modo chocante de extorsão, simulação, chantagem e violência emocional que procura fixar a atenção continuamente sobre si.

Muitas pessoas chegam a se ofender se são tratadas bem, com educação e respeito, mantendo certas distâncias devidas à necessidade de não precipitar ou invadir a intimidade de alguém com um abuso de confiança.

É sobre esta base emocional que resulta fácil para muitas pessoas ceder boa parte da sua autonomia pessoal em favor de outros que lhes ofereçam essa estimação que realmente não necessitam, como no caso das mulheres Ianomani.

Realmente o nosso primitivismo é mais fácil vê-lo nas tribos do que aqui mas não significa que não exista.

(Se tu es uma mulher de quem são os bigodes?, diz o provérbio mongol)

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Ter razão e saber ter razão.


Todos os problemas dos seres humanos poderiam reduzir-se a esta frase:


"Não se trata só de que tenhas razão mas deves saber tê-la"


Mas a imensa maioria das pessoas conforma-se simplesmente com ter a razão sobre temas, ideias ou acções. Isto dá-lhes legitimidade para "lutar por elas", reivindicar, extorsionar, etc. sem saber como a razão deve ser realmente exposta e defendida.

Pode parecer trivial o que digo mas é uma constatação diária, em todos os níveis da vida. Por isso gosto de essa frase de um antigo sábio:

"O sufi não reivindica, conhece o segredo do significado"

Isto é no caso em que as pessoas têm razão, que não é o maioritario. Fica o caso em que nem têm razão nem sabem ter o que não têm.

E há um caso ainda por considerar: o das pessoas que não têm razão mas sabem tê-la e também não tê-la.

Realmente essas pessoas sabem.

Para ressumir diriamos que as nossas razões são tão próprias que carece de sentido expó-las e sempre temos aquele aforismo dos taoístas:

"Instrumento correcto com homem incorrecto resultado incorrecto mas instrumento incorrecto com homem correcto resultado correcto"


Mas quando compreenderá o homem incorrecto isto?

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Família


Em 1930 o meu avô Antonio emigrou para Buenos Aires. Ele tinha toda a sua família paterna lá. Ficou órfão com cinco anos. O seu pai era um anarquista casado com uma piedosa mulher com a que teve três filhos. O meu bisavô ia e vinha de Buenos Aires. De cada ocasião que vinha nascia um filho. O do meio foi meu avô. Ele recordava como tinha ido com outros miúdos desfazer um mitim no que participava o seu próprio pai. O cura de Corcubião encarregara-se de lhes facilitar os apitos pertinentes.

O meu bisavô tinha uma tuberculose e encontrava-se com a sua mulher e a sua família. Ela insistiu para que fossem visitar um curandeiro famoso, o cura de Vilhastoso. Ele foi sem fé, por conformar-se à petição da mulher. O cura de Vilhastoso foi claro: se ele ficava uns meses tinha esperança de se recuperar mas se ia para Buenos Aires, morreria. Ele foi para Buenos Aires, onde se encontrava a sua mãe e os seus seis irmãos. E ali morrreu com 35 ou 36 anos oito meses mais tarde.

Agora passaram vinte anos e o meu avô está na Plaza de Mayo, recém chegado, junto a centos de emigrantes que por ali deambulam sem ofício nem benefício. O único contacto que tinha com a família era por cartas ocasionais, distanciadas por anos.

Uma mulher de mais de oitenta anos acerca-se a ele e pergunta-lhe se, por acaso, conhece a Antonio Lozano, de Corcubião.

O meu avô sorri e, suponho, emocionado da-lhe uma abraço.

- Abuela!

Ele dizia-me:

Los tranvías iban a una velocidad endiablada y ella, con 83 años, los agarraba al vuelo.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Um galego e outro.


Um dos meus avôs, Rafael, contou-me muitas vezes esta história que, como já referi noutra ocasião, poderia ser do Mullah Nasrudin.


Dous homens estão a rematar o almoço. Trata-se de um almoço de negócios: um é tratante de cavalos e outro de burros mas isto não é importante. O caso é que chega a hora da sobremesa e duas maçãs se encontram à espera de serem comidas. São vermelhas, carnosas, apetitosas.


O tempo passa mas as maçãs continuam sem serem apanhadas. A conversa deriva sobre temas quase esotéricos: os costumes dos burros do interior e as suas manias, a história da mula que quando lhe perguntaram que classe de animal era respondeu que o seu pai era um cavalo, e toda uma série de contos e pequenas histórias enovelados e sem fim.


As maçãs, solitárias e no meio da mesa, continuavam sem comer mas, de súbito, o galego alongou o braço e apanhou uma: era grandiosa, imensa e vermelha.


No prato ficava uma maçã formosa mas muitíssimo mais pequena. O companheiro indignou-se:


- Parece mentira. Não esperava isso de ti. Que educação recebeste?


- De que me falas?


- Como apanhas a maçã mais grande? Quando se viu semelhante cousa?


- E tu que farias?


- Evidentemente colheria a pequena.


- Pois aí está!

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Cabeças, cordeiros e mestres.


Hoje só duas pequenas meditações. Uma procede de uma dedicatória do meu querido Idries Shah. Ele tem um livro intitulado Contos dos derviches que diz assim:


"Aos meus mestres,
que tomaram o que foi dado
que deram o que não podia ser tomado"


Considero-a uma das melhores dedicatórias que li jamais.

A segunda história procede do profeta Muhammad, que repartia um cordeiro junto à sua filha Fátima. Ela numa certa altura reparou que o cordeiro estava a se acabar e disse-lhe:


- Não temos mais que a cabeça.


Muhammad respondeu:


- Temos tudo menos a cabeça.


(O aspirante a discípulo dirigiu-se ao mestre e foi o mestre quem pediu perdão)

domingo, 20 de setembro de 2009

Intelectual


Existe uma hadice do profeta Muhammad que diz:


"A tinta dos sábios é mais sagrada que o sangue dos mártires"


Muhammad compreendeu muito bem o ressentimento encoberto que existe nas acusações contra a intelectualidade. Certamente muitas pessoas, algo cabeças duras, utilizam palavras como "prática" e "experiência" como formas de fugir da necessária reflexão que todo homem ou mulher com aspirações superiores necessariamente deve fazer. Os grandes mestres da tradição humana essencial não foram precissamente cabeças duras: Buda, Sócrates, Platão, Muhammad, Al-Ghazali, Ibn Arabi ou Suhrawardi entre muitissimos outros fizeram um esforço, também intelectual, considerável.

Outra cousa é a razão não intelectual ou os "intelectuais". Aqui vemos a degradação do sentido originário de uma palavra e o uso sofístico e baixo do racionalismo vulgar, que não é capaz de fazer mais do que uma emulação aparente do verdadeiro sentido, sentido que existe ali onde a cabeça descansa no coração.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Paradoxo


Hoje pensava no paradoxo que há entre o sentimento da nossa importância em relação aos diversos projectos nos que nos vemos inseridos e o efeito real sobre eles que penso é inversamente proporcional. Todos conhecemos pessoas que se sentem imprescindíveis em qualquer actividade. Actuam come se na sua ausência tudo fosse ir à catastrofe e, na verdade, quando estas pessoas deixam "essse lugar" as cousas continuam a funcionar como sempre ou pode que, depois de um reajuste, melhor.
Tenho visto funcionar isto com frequência, começando por mim mesmo, e acontece muito nas empresas onde as pessoas devem alimentar uma falsa sensação de importância e uma motivação centrada sobretudo em sentir-se imprescindíveis. Depois são reformados e "la vida sigue igual". Em certo sentido actuamos como o Padrinho, pequenos Corleones do dia a dia. Em tudo há graus, naturalmente.
Quando nos libertamos de esse sentimento de "excessiva responsabilidade" a vida segue igual mas nós somos diferentes e podemos desfrutar sabendo que, felizmente, tudo irá bem sem nós e...porém nós estamos aí.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Jafar Sadiq e o vizinho bêbedo


O grande sábio Jafar Sadiq não tinha uma boa relação com as autoridades. Respeitava as leis mas não asssistia nunca às reuniões da corte e aos convites do rei apesar da suas reiterada insistência. Acontecia que tinha como vizinho um homem de costumes dissipados, alcólico e que incomodava insistentemente a Jafar Sadiq, com os seus ruídos e os seus escândalos. Um bom dia este homem envolveu-se numa disputa que o levou à cadeia. Podia ficar ali indefinidamente já que não parecia que houvesse muita vontade de manter as garantias legais com um vagabundo bêbedo.

Jafar Sadiq estranhou-se do silêncio que rodeava o seu lar. Por primeira vez podia meditar sem ser perturbado mas não estava tranquilo. De modo que saiu à rua e averiguou o que se passava.

E vemos agora ao ilustre imã Jafar Sadiq entrando na sala de recepções do rei perante o assombro dos seus cortesões e do próprio rei.

- Que felicidade ver-te aqui, ilustre amigo. Ver ao sábio dos sábios visitando a um rei não rebaixa a tua sabedoria mas eleva a minha realeza.

- Belas palavras, majestade, que humildemente agradeço. Serias, então, capaz de aceitar uma petição da minha parte?

- Fala, Jafar, farei tudo o que me peças pois é de sábios saber pedir!

- Majestade, libertai ao meu vizinho, preso na cadeia desde há dois dias. Ele não tem família e eu sou o único que pode velar pelo seu destino.

A presença de Jafar, a sua elegância e a sua nobre humildade não produziram no rei sentimentos ofensivos nem de orgulho ultrajado como poderia ser habitual e libertou ao prisioneiro perante o assombro dos cortesões.

O rei pronunciu estas palavras:

"A tradição diz que não existem os sábios para adornar as cortes mas as cortes para cenário dos sábios"

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Erro próprio e verdade alheia.


A necessidade de nos expor aos nossos próprios errros, de nos arriscar a nadar perdendo a roupa é uma necessidade da nossa aprendizagem. Uma criança tem que se arriscar a cair para poder andar. Se não for assim não andaria mais. Existe uma atitude pela qual esperamos que as nossas ações estejam sempre garantidas de sucesso, de um êxito e de um reconhecimento mas isso impedira desenvolver-nos autenticamente. Devemos aceitar que os mal-entendidos são inevitáveis e actuar com paciência. Nem tentar resolvê-los com excessiva rapidez sobre a base de justificações e compulsões de "fazer as pazes" mas ter a intenção firme e clara de transparência. Perante a nossa própria consciência primeiro. Viajamos dentro de nós e constatamos os nossos fantasmas, os nossos medos, as nossas falsas dialécticas mas não as projetamos sobre qualquer quimera, sobre qualquer cousa que esteja fora de nós. Compreendemos que é cousa nossa e tomamos nota de onde doe, que é o que nos causa inquietação ou angústia, raiva, ira ou nos obriga compulsivamente a "dar o último golpe".

Todas as pessoas somos semelhantes. A diferença está no reconhecimento que fazemos disso para com nós próprios. Aprender do erro próprio é sempre melhor que aprender da verdade alheia.

Actuar de modo que os nossos actos fiquem à vista e também as nossas limitações sempre pode atrair um olhar compassivo e bondoso sobre nós que nos ajude a melhorar a nossa condição e não a feroz e impiedosa crítica que impediria a uma criança aprender a andar. Felizmente confiamos em que há pessoas generosas, se manifestem ou não. Elas ajudam-nos sem fazer-se notar e vaia aqui a minha gratidão pela parte que me toca.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Identidade e pertença: uma confissão secreta.


Já tenho comentado aqui o desinteresse que tenho por preservar uma suposta tradição cultural galega, espanhola ou qualquer outra. Penso que os problemas que todas as culturas humanas tentam resolver é o da identidade humana, com maior ou menor fortuna. Esta identidade humana, que vem a significar que o homem deve ser igual a si mesmo, pode resultar uma quimera quando se interpõe preconceitos culturais que tentam promover uma determinada etnia, religião ou ideias políticas. Todas estas formas o que querem são quotas de poder ou bem promover discussões bizantinas e intermináveis. Enfim, cada quem ao seu negócio.

Há muitos anos Lluis Vicente Aracil ofereceu-me duas pistas sobre o que eram duas actitudes vitais fundamentais: a casa e o cárcere. E como os discursos, as intenções, os estilos, a vida mesma tendia a organizar-se desde estas duas experiências básicas. Não me explicou muito mais, só me disse que pensasse como se controlavam as entradas e as saídas numa e noutra. Era tudo. Pensei nisso muito e muito. Eu era muito novo e tive sorte de conhecer a Aracil nessa idade em que tudo se absorve. Guardarei uma gratidão imensa para com ele toda a minha vida. E isso fez-me afastar dos nacionalismos e outras seitas similares "a fume de caroço".

Amo muitas cousas da minha cultura galega e espanhola mas não tenho sentimentos de propriedade nem de representatividade. Não pretendo "salvar" cultura nenhuma nem lutar contra os "malvados" e outras bestas negras que supostamente são causantes dos males que muitos se arriscam a diagnosticar. Não, francamente sou pouco combativo nesse sentido. De maneira que os autênticos malvados podem pôr-se a tremer. E com toda a sinceridade o digo, aqui não há brincadeira nenhuma.

Presumir disto e daquilo avergonha um pouco, mesmo que seja mantido como um segredo do coração. Não pensáis, amigos?

Entretanto, amigo, sorri.

Smile though your heart is aching/Smile even though its breaking/When there are clouds in the sky, youll get by/If you smile through your fear and sorrow/Smile and maybe tomorrow/Youll see the sun come shining through for you//Light up your face with gladness/Hide every trace of sadness/Although a tear may be ever so near/Thats the time you must keep on trying/Smile, whats the use of crying?/Youll find that life is still worthwhile/If you just smile//Thats the time you must keep on trying/Smile, whats the use of crying?/Youll find that life is still worthwhile/If you just smile.


domingo, 13 de setembro de 2009

Poder e superstição.

Galáxia roda de carro

Consideremos o uso da palavra PODER. Que imagem, que definição aparece na mente das pessoas quando esta palavra é utilizada? O controle, a manipulação das vontades, a livre disposição sobre seres e objectos, a capacidade de dar morte, o monopólio e o uso da violência e, em definitivo, toda uma série de rasgos que, se nos fixarmos neles, têm em comum uma característica:
a negação.

Isto é patente nos discursos políticos, na maneira em que o poder actua como uma forma de representação. Sempre me admirou o carácter simbólico e puramente ficional do poder. Quando se fala de poder nestes termos do que em realidade se está a falar é de IMPOTÊNCIA. E é curiosa a inversão semântica. Curiosa como tamanha irrealidade banal possa ter tal predicamento. Foi Espinoza o que compreendeu este conceito de poder como medo e superstição, como negação do ser.

Mas existe o poder como uma realidade positiva, real, dadora e criadora de vida. Desde o crescimento de una planta ao desenvolvimento de uma criança, o poder inerente da natureza. O poder como harmonia e como amor: um poder que consiste em saber a inanidade da morte e o sem-sentido de toda pretensão de domínio.

Um domínio que se baseia na velada ou patente ameaça de "dar morte".

Como se isso fosse possível!

sábado, 12 de setembro de 2009

Interpretações


António Machado é não só um grandíssimo poeta mas também um sutil filósofo. Gosto de ler e reler o seu Juan de Mairena de vez em quando. Inicia-se da seguinte maneira:


La verdad es la verdad, dígalo Agamenón o su porquero.


Agamenón- Conforme.


Porquero- No me convence.


De jeito compreensível durante muito tempo isto foi interpretado unilateralmente no sentido de que há verdades instauradas pelo poder que não podem convencer à parte fraca (o porqueiro). Era a típica explicação com consciência de classe de uma época.

Há, porém, a explicação de que o porqueiro é a parte desconfiada e ressentida da mente que não aceita a imparcialidade, em contraposição à nobreza do rei. A razão de que só se tenha visto uma cara durante muito tempo dá que pensar. Lembra-me o facto, que eu presenciei, de um sociólogo que interpretava os aforismos de Heráclito dizendo que era evidente o seu classismo e o seu aristocratismo, reduzindo o seu pensamento a uma simples emanação social.

Há uma frase procedente de Bahodine Naqshband que diz:

"Se ensinas por meio da autoridade não estás ensinando nada".
E haveria que acrescentar aquilo de que se só vês a autoridade do teu mestre não vês ao mestre.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O que realmente acontece


Julgar as pessoas baseando-nos em simples manifestações exteriores é um hábito bastante arraigado. Damos as situações e as pessoas por feitas e o que costuma acontecer é que se solidificam os problemas sem que se produça uma abordagem mais construtiva. Isto faz com que os problemas reapareçam ciclicamente ou que tenhamos uma estranha capacidade para intuir o negativo que, sem saber, estamos convocando.

A história de hoje fala de esses preconceitos levados a um espelho por excelência, o mestre. Realmente as atitudes que mostram a humildade ou qualidades louváveis são motivo de desconfiança para muita gente. Provavelmente haja razões para essa desconfiança. Há tanta falsa piedade que mantemos uma reserva natural, ás vezes difícil de perceber em nós próprios. É uma defesa mas ás vezes limita as nossas percepções. Recordo a frase de um mestre:


- A humildade que percebes nessa pessoa não está aí para te causar impressão, está aí pelas suas próprias razões.


Dous amigos estavam perante um homem de alta realização. Um deles estava algo tenso pelo que considerava uma forma de actuar excesivamente piedosa. Havia bastante gente ali.


- Não achas isto um pouco "aparente"?


- Não, não acho. Este homem é o suficientemente realizado e generoso como para mostrar-se assim. Pode contrarrestar os efeitos destes maus pensamentos.


- Como é assim?. Não estou eu a pensar mal?


- E não tens um amigo aqui que está corregir-te e indicar-te a tua falta de objectividade? Pensa que isso também é parte da iluminação deste homem. Não o duvides!


Em qualquer caso sempre podemos dizer:


(Podem acontecer duas cousas: que ele seja alguém que tenha algo para me ensinar ou que possa aprender de mim. Também podem acontecer ambas cousas)

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

A generosidade e os inocentes.


De novo de volta. Espero iniciar uma etapa na que pequenas histórias, reflexões e comentários possam ser incluídos cada dia ou quase. Não grandes textos, ou algum de vez em quando, mas uma continuidade baseada em acontecimentos quotidianos e diários. Enfim, aqui vai a pequena história de hoje, que tem a sua miga:


Um homem de certo conhecimento tinha um bom amigo que não compreendia certas acções suas que pareciam envolvê-lo sempre em situações críticas, que limitavam a sua reputação e credibilidade, fazendo-se alvo de ataques virulentos ou bem de uma hostilidade velada mas ainda mais nociva. Um bom dia este amigo, cansado já, pediu-lhe que lhe explicasse este comportamento seu, porque começava a vê-lo como uma eiva de difícil justificação. E o que num princípio admirava era visto já como uma fraqueza.

O homem respondeu com singeleza:

- Não pensas que é melhor, também para eles, que me ataquem a mim e não ao primeiro inocente que se encontrem por aí!

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

O canto do desejo ardente de Ibn Arabi



"O silêncio não é a ausência de ruído mas a ausência de ego"

(Provérbio budista)


Houve um tempo em que eu rejeitava quem não tinha por religião a que eu tenho.

Agora, o meu coração tornou-se capaz

De aceitar todas as formas

É pasto para as gazelas,

Convento para os monges,

Templo para os ídolos,

A Kaaba dos peregrinos,

As tábuas da Torá e o Livro do Corão.

Creio na religião do Amor,

Seja qual for a direção que as suas montadas sigam.

O Amor é a minha religião e a minha fé.



terça-feira, 21 de julho de 2009

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Informação




Acabo de incorporar um novo link à Família Shah. Trata-se de informação sobre o trabalho de Idries Shah e Omar Ali-Shah em Ocidente. Boa parte da sua obra está disponível em espanhol e português e é absolutamente recomendável para todas aquelas pessoas que tenham um interesse na sabedoria da Tradição essencial, uma tradição que existe desde que o homem é homem. Nela se indica o que a Tradição é e o que Tradição não é.


http://www.realsufism.com/





domingo, 12 de julho de 2009

Uma noite em Nishapur IV


Quando Hussein acabou de tocar, e quase como uma premonição, uma intensa tormenta eléctrica acercava-nos à meia noite. Uns minutos mais tarde começou uma chuva intensa, selvagem. Era inabitual nesta época do ano. O ambiente pareceu tomar uma especial intensidade. Percebi como os olhos dos amigos brilhavam, havia uma carga especial no ambiente. De súbito tive a sensação de estar num lugar recôndito e perdido da civilização, habitado por seres procedentes dos quatro cantos da terra. Senti algo profundamente familiar, como se já os tivesse conhecido antes, como se todo isso já fosse vivido outrora ou quiçá sonhado.

Fátima era uma mulher de uns quarenta e cinco anos. Exprimia-se com uma jovialidade e uma viveza que contrastava com a sua voz grave e harmoniosa a um tempo. Transmitia uma confiança e uma tranquilidade essenciais. Tudo no seu corpo reflectia uma cadência musical e uma cálida simpatia que se fazia ainda mais patente quando escutava ao outro. Não só falava de um modo que um desejava que não parasse, era um gozo observá-la, mas era um pessoa que realmente ouvia ao outro. Isto percebe-se, o mesmo que o contrário.


- Considere o seguinte- falou Fátima. Hoje somos aqui quinze pessoas mas somos menos dum terço das que poderiamos estar. Logicamente as condições políticas têm a ver com isso mas para nós tudo está ligado. Por exemplo, coincide que você está aqui, que pessoas que são habituais nestas reuniões hoje não chegaram, que há uma tormenta fora e tudo isso e mais detalhes compõem uma situação que não se repetirá. É provável que nunca mais nos voltemos a ver, quase com toda probabilidade não coincidiremos as mesmas pessoas numa situação semelhante. Tudo isto é óbvio, é assim sempre, em todas as situações mas no nosso caso tem uma relevância especial. Poderia acontecer que esta mesma situação se repetisse dentro de seis meses com as mesmas pessoas e a impressão que levasse poderia ser muito diferente. Tanto das pessoas individuais como do grupo.


- Não alcanço a compreender o que me quere transmitir.


- Tudo muda no nosso trabalho. Na vida ordinária as pessoas não cambiam. Têm mudanças emocionais e temperamentais, acontecem cousas, obviamente, mas básicamente a pessoa é a mesma. Aqui não é assim: não podemos julgar uma pessoa de agora com os parámetros de há um ano. O outro cambiu, nós cambiamos. Cada situação tem um balance de qualidade diferente. É sutil mas muito real.


- Compreendo. Isto é o que faz que não haja regras fixas, que não se possam estabelecer dogmas nem crenças rígidas.


- Dependemos da percepção não das crenças. Os falsos grupos têm que reafirmar-se sempre numa série de crenças e utilizam todo tipo truques conscientes e inconscientes. Tome por exemplo qualquer sociedade com as suas aparentes diversidades de opiniões, ideologias, estilos de vida. Por mais diferentes que pareçam têm uma função complementar, necessitam-se mutuamente e alimentam a sua identidade na oposição e no contraste de uns com outros.


- Mas pode ser de outro modo? Somos seres sociais depois de tudo.


- É muito certo mas também somos seres cósmicos, por exemplo. Mas ninguém terá em conta isto. Não está no programa de lavagem cerebral das diversas sociedades. Existe uma ideia implícita do que é o homem e de até onde podemos chegar e do que podemos obter, sempre dentro duns certos limites. Qualquer rapaz de doze anos em Ocidente sentirá-se hoje livre de negar a existência de Deus da maneira mais simplista que posssa imaginar, como se nega a existência dos Reis Magos. E não pense que os adultos estão melhor. Consideram essa crença, que Deus não existe, como uma obviedade. Mas se lhe falarem do Big-Bang com terminologia da mecánica quântica e complexas orientações matemáticas pensarão que isso já dá um sentido ao real. Não compreende o absurdo?


- O inglês Chesterton dizia que chamávamos explicação ao que ficava no meio entre uma cousa inexplicável e outra cousa inexplicável.


- Que bom! É isso. Somos um enigma e um mistério mas sempre haverá alguma ordem religiosa, política, filosófica, científica ou tribal que porá as cousas no seu lugar e nós resolverá todos os enigmas ou nós prometerá resolvê-los. Não é assombroso que estejamos a falar deste modo nós aqui? Não é algo irredutível a qualquer explicação, a qualquer causa?


Nesse momento alguns celulares começaram a soar. Outros amigos liam mensagens. Alguém, num quarto ao fundo, consultava o correio em Internet.


- Como pode ver- disse Fátima, não estamos alheios. Estamos implicados e ligados às situações e à nossa gente e ao mesmo tempo podemos suspender o tempo, fazer uma paragem no meio da tempestade.






(Haydar, Haydar)

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Uma noite em Nishapur III

Tumba de Attar, autor da Conferência dos pássaros.


O Khoração é um lugar especial dentro da tranmissão do conhecimento. Foi ali onde começou um modo de experiência que consistia em imbricar-se nas atividades da vida quotidiana ao mesmo tempo que se desenvolvia um caminho interior ou místico. As pessoas ligadas a artes e ofícios tentam destacar nas suas profissões. Não procuram simplesmente ter êxito senão fazer as cousas bem. Isto é uma maneira de concentrar as energias, de desenvolver uma mestria que reflecte um carácter interior. Em particular figuras como Al Sulami, Abu Hafs, Yusuf Hamadani (há quase mil anos) iniciaram uma atividade que se diferenciava das formas tradicionais dos grupos esotéricos. Nada de identificações exteriores que os sinalassem como especiais. Desconfiança das chamadas experiências místicas (em muitas ocasiões mescla de emocionalismo e imaginação, quando não uma forma de inflamar o ego). Aceitação das normas sociais estabelecidas no lugar no que viviam e conformidade com o poder político que não sufoque as liberdades básicas do ser humano. Respeito pelos diferentes credos e separação dos assuntos espirituais dos temporais, o que leva a uma clara diferenciação do poder político e religioso. Esta perspectiva está ligada ao modo malamati do ensino superior. Estou convencido que se Kant tivesse lido os princípios da escola malamati teria uma opinião muito mais favorável ao verdadeiro significado do misticismo. Para um malamati nenhuma experiência interior tem verdadeiro valor se não está ligada a uma ética pessoal pura e recta, a uma sinceridade total que liga a homem com a sua intenção. Nada de fundar uma clerecia divorciada da vida (recomenda-se como preferível casar e ter uma família), nada de ostentações de rangos. Em algumas ocasiões o malamati tem um comportamento que o desacredita socialmente com o fim de preservar-se da possível hipocresia que suporia ser considerado "bom".


Estávamos no jantar , na ceia em que os amigos compartiam a história de Ali, Muskil Gusha, o disipador de todas as dificuldades. Era uma longa história contada por todos os amigos. A história das vicisitudes dum lenhador viúvo desde o momento em que a filha lhe pede mais e melhores cousas para comer.

Depois ainda se seguiu a conversa, uma agradável velada entre todos. É claro que eu tinha algumas perguntas a fazer mas não sabia se encontraria o momento oportuno ou se as minhas perguntas resultariam um pouco ridículas. Havia algo que inconscientemente tinha na minha cabeça: o facto de que essa gente não tinha uma aparência "religiosa". Eran educados, gentis e com sentido do humor mas se não for porque sabia que seguiam um caminho místico, provavelmente teriam passado despercebidos para mim. Poderia pensar que fossem uma associação cultural de qualquer cousa mas místicos... isso seria o último que pensaria!

Um homem que pasava dos sessenta anos, de nome Hussein, pareceu adivinhar as minhas tribulações, quase ocultas para mim, e falou-me

- Pode que tenha lido muitos livros sobre sufismo mas nós não costumamos falar sobre "sufismo", sobre religião ou teologia. É mais bem raro. As pessoas que aqui vê já passaram essa fase. Não quero dizer que não seja algo que não esteja na nossa formação ou que, individualmente, as pessoas não o façamos como forma de meditar certas verdades mas não são a base da nossa relação pessoal e da nossa dialética.

- Mas imagine que eu tivesse que transmitir a outras pessoas o que vocês são ou fazem. Supostamente são um grupo religioso, uma forma de culto de algum tipo, com um sistema de crenças e tudo isso. Como explico então o que fazem?. Digo que tocam música, que recitam poemas e que são pessoas cordiais com uma sensibilidade especial?

- Pode dizer isso- riu - e garanto-lhe que estaria mais perto da verdade que se diz que somos um grupo religioso ou um culto tal ou qual. No primeiro caso estaria a transmitir factos, mais ou menos idiosincráticos e externos, mas factos. No outro caso estaria a transmitir valorações que dependem muito do condicionamento cultural das pessoas. Que é a religião, que é um culto?. O problema é que damos as cousas por feitas, como se automaticamente as palavras transmitissem o significado por si mesmo. Isso é só um hábito. Se procurar a palavra sufismo numa enciclopédia dirá que é uma espécie de misticismo islâmico. Muitas pessoas ficam tranquilas com isso para bem ou para mal: já têm uma etiqueta. Mas que é realmente a mística, que é realmente o islão?

- Mas terão umas crenças básicas, uns alicerces que possam transmitir.

- Com certeza, mas só como forma de algo que tem uma base no conhecimento. A compreensão e o significado das crenças varia segundo a evolução da pessoa. Se uma pessoa fica com as crenças e não alcança o conhecimento estas são pior que se não tivesse nada. Compreenda que nós não trabalhamos para mudar as crenças das pessoas senão para aprofundar nas que já têm.

- Isto lembra-me a Espinosa.

- Pode ser mas eu confeso-lhe que não sei quem era Espinosa. Não sou filósofo. Sou artesão, fabrico setares, neys, violas. E também toco!

- Desculpe, mas é uma espécie de deformação profissional.

- Não, não se desculpe. Já estou intrigado por saber quem era Espinosa. Também sou filósofo e erudito à minha maneira! Conheço as deformações profissionais em carne própria!
E então Hussein colheu o ney e começou a tocar a peça do seu mestre turco predileto.



(Continuará)