sábado, 31 de janeiro de 2009

Namoro

Para Marta, mi hermana, este Fausto de nuestra sangre africana.

A primeira vez que ouvi falar em português de jeito continuado foi no pub El Halcón Maltés, na Corunha ,e realmente fiquei namorado. Pires Laranjeira falava sobre o poeta Viriato da Cruz, sobre a condição colonial, sobre Angola, sobre o paradoxo que reflectia o poema: uma mulher analfabeta que recebia "uma carta em papel perfumado". Fiquei engaiolado pela mestria do professor ao expor com verdadeira inteligência e subtileza o problema que ligava poder, comunicação e os equívocos e mal-entendidos do amor. Mentres penso e preparo algum texto mais sobre estas questões não encontro melhor preparação que esta canção na boca do meu sempre amado Fausto. Ponham os auriculares.

Namoro

Mandei-lhe uma carta em papel perfumado
e com letra bonita eu disse ela tinha
um sorrir luminoso tão quente e gaiato
como o sol de Novembro brincando
de artista nas acácias floridas
espalhando diamantes na fímbria do mar
e dando calor ao sumo das mangas

Sua pele macia - era sumaúma...
Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas
sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo
tão rijo e tão doce - como o maboque...
Seus seios, laranjas - laranjas do Loje
seus dentes... - marfim...
Mandei-lhe essa carta
e ela disse que não.

Mandei-lhe um cartão
que o amigo Maninho tipografou:
"Por ti sofre o meu coração"
Num canto - SIM, noutro canto - NÃO
E ela o canto do NÃO dobrou

Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete
pedindo, rogando de joelhos no chão
pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigenia,
me desse a ventura do seu namoro...
E ela disse que não.

Levei á Avo Chica, quimbanda de fama
a areia da marca que o seu pé deixou
para que fizesse um feitiço forte e seguro
que nela nascesse um amor como o meu...
E o feitiço falhou.

Esperei-a de tarde, á porta da fabrica,
ofertei-lhe um colar e um anel e um broche,
paguei-lhe doces na calçada da Missão,
ficamos num banco do largo da Estátua,
afaguei-lhe as mãos...
falei-lhe de amor... e ela disse que não.

Andei barbudo, sujo e descalço,
como um mona-ngamba.
Procuraram por mim
"-Não viu...(ai, não viu...?) não viu Benjamim?"
E perdido me deram no morro da Samba.

Para me distrair
levaram-me ao baile do Sô Januario
mas ela lá estava num canto a rir
contando o meu caso
as moças mais lindas do Bairro Operário.

Tocaram uma rumba - dancei com ela
e num passo maluco voamos na sala
qual uma estrela riscando o céu!
E a malta gritou: "Aí Benjamim !"
Olhei-a nos olhos - sorriu para mim
pedi-lhe um beijo - e ela disse que sim.


sábado, 24 de janeiro de 2009

O mestre da disseminação: Ibn Arabi

Mas isto que contas é um conto velho- dizem eles

Mas isto que contas é um conto novo provavelmente- dizem alguns

Conta-o de novo- dizem eles.

Oh!, não o contes outra vez- dizem outros

Mas eu já tinha ouvido tudo isto antes- dizem alguns

Oh!, mas não era assim como se contava- diz o resto

E esta, esta é a nossa gente, dervixe Baba, este é o homem.

(Recitação Naqshbandi)

Ibn al Arabi (1165, Murcia- 1240, Damasco) evitava falar sobre filosofia ou espiritualidade já estivesse com pessoas sem formação ou muito instruídas. Não se trata de algo excepcional no sufismo, mais bem é a regra. Contrariamente ao que se possa pensar noutros círculos ou em formas imitativas, os estereótipos sobre o que um homem espiritual é ou faz não se correspondem com a, pelo geral, banal realidade do cotidiano. Não há dúvida que em torno a Ibn Arabi há muito glamour, especialmente nos círculos intelectuais ocidentais mas não só. Ele foi considerado o mestre da intelectualidade pura, onde as suas capacidades racionais estavam unidas de jeito único a uma intuição mística incomparável. Escreveu, de facto, centos de livros e tratados sobre temas que unem filosofia, poesia e espiritualidade de jeito inextricável. Mas as ideias que nos podemos fazer sobre ele podem ficar distorsionadas se nos fixarmos nos aspeitos mais brilhantes da sua produção, sejam experiências espirituais ou a sua influência tão notável em toda a cultura oriental posterior (desde Marrocos até a Indonésia passando pela India). As hagiografias tendem a passar por alto a realidade "ordinária" na que se desenvolve a vida dos seres humanos, mesmo dos mais notáveis.
É neste sentido que são interessantes algumas considerações de Ibn Arabi sobre os mestres e homens espirituais que conheceu, sobre o seu próprio discipulado, sobre as actitudes das pessoas perante o ensino espiritual, enfim, sobre as facetas que comunmente não aparecem nas considerações mais técnicas e sapienciais do ensino, que já estão feitas para pessoas avançadas no seu desenvolvimento, cousa que é bastante esquecida nos círculos mais academicistas ou mais "cultistas". É com este proposito que escrevo isto. Unir uma contas de pequenas estórias, aforismos e ditos do que foi conhecido como o Mais Grande dos Mestres. Sobre o mestre diz: " A gente pensa que um mestre deve fazer milagres ou demostrar iluminação mas o único que precisa um mestre é ter aquilo que o discípulo necessita"
Numa ocasião encontrou com Abu Ishaq, que vivia perto de Algeciras, vendedor de cerâmica e homem de doce amabilidade e esforço interior intenso. Este disse-lhe: "Irmão, na minha opinião os homens são de dous tipos: os que falam bem de mim e os que o fazem mal. Os que falam bem de mim são os meus amigos, que me desejam o bem, dizem de mim o que me faz bem e merecem, realmente, o nome de amigo; os outros, os que o fazem de modo prejudicial, são os que falam da minha espiritualidade"
A própria educação na via, quando ainda era um rapazinho de quinze anos dependeu nos seus inícios de duas mulheres excepcionais: Shams de Marchena e Fátima de Sevilha.
De Shams de Marchena diz: " Vivia em Marchena dos Olivares, onde ia com frequência visitá-la. Entre os homens e mulheres espirituais, nunca conheci ninguém que tivesse semelhante domínio da sua alma. As suas práticas e as suas revelações eram notáveis. Tinha um coração forte e puro, uma energia espiritual nobre e uma grande discriminação. Ocultava o seu estado espiritual, mas aconteceu que me confiu um segredo, pois ás vezes tinha revelações ao meu respeito e senti muita alegria. Tinha uma barakah imensa e manifesta. Conheci-a quando tinha oitenta anos. Um dia que al-Mawruri e eu esávamos com ela, de repente, voltou a cabeça e gritou o mais forte que pôde: "Alî, volta e apanha o lenço!". Quando lhe perguntamos a quem se dirigia, explicou-nos que Alî vinha a visitá-la e que se tinha detido à beira do rio. Quando se ergueu para reemprender o caminho, esquecera o lenço. Por isso ela o tinha chamado; ele voltou e recolheu-no. Uma hora mais tarde apresentou-se e contou-nos como se tinha detido à beira da água para comer e depois tinha esquecido o lenço. Foi quando, um tempo mais tarde, ouviu a Shams para adverti-lo. Também tinha o poder para exprimir os pensamentos dos demais. As suas revelações eram certas e eu vi como realizava muitas maravilhas"
Quanto a Fátima de Sevilha Ibn Arabi mostra uma grande intimidade:
"Vivia em Sevilha. Quando a conheci tinha noventa anos e alimentava-se dos restos de alimentos que a gente deixava à porta das suas casas. Ainda que era tão velha e comia tão pouco, sentia vergonha de olhar a sua face, pois era rosada e fresca. A sua surata pessoal era a Fâtiha (A abertura do Alcorão). Numa ocasião disse-me: " A Fatiha foi-me concedida. Está ao meu dispor para tudo o que queira fazer".
Dous dos meus companheiros e eu construimos-lhe uma cabana de canas para que vivera nela. Tinha o costume de dizer: "Os outros vêm visitar-me com uma parte deles mesmos, deixando nas suas casas a outra parte, enquanto que meu filho Ibn Arabi é a frescura dos meus olhos, pois quando vem ver-me vem tudo inteiro; quando se ergue, ergue-se com toda a sua pessoa. Não deixa nada de si mesmo noutra parte. Desta forma é como convém estar no Caminho"
Ainda que Alá lhe tivesse apresentado o Seu Reino não se teria mudado nada; somente dizia: "Tu es Tudo, fora de Ti tudo é funesto para mim". Estava confusa perante Alá. Ao vê-la, poderia dizer-se que era retardada, ao que ela teria respondido: "O retardado é o que não conhece ao seu Senhor". Era uma misericórdia para os mundos.

Mentres estava com ela numa ocasião, veio buscá-la uma mulher para queixar-se que o seu esposo se achava em Sidónia, a dous dias de viagem de Sevilha. Informou-nos de que queria encontrar outra mulher naquela cidade, cousa que considerava excesivamente duro de suportar. Perguntei-lhe a Fátima se tinha escutado a queixa da mulher e supliquei que pedisse a Alá que lhe devolvesse o marido. Ela respondeu: "Não farei súplicas, mas vou actuar de forma que a Fâtiha siga a esse homem e o traga a casa" Então disse: "No nome de Alá, o Todo Misericordioso, o Muito Compassivo" e recitou o resto da surata. Depois acrescentou: " Oh, surata al Fâtiha, vai reunir-te com o homem desta mulher a Sidónia de Xerez e onde quer que esteja, fá-lo voltar imediatamente e não deixes que se demore" Pronunciou estas palavras na sobremesa.

Dous dias mais tarde, o marido chegava à sua casa. A mulher veio então informar do seu regresso e exprimir o seu agradecimento. Pedimos-lhe que trouxe-se o seu marido e, quando se apresentou, perguntamos-lhe que o tinha feito voltar de Xerez quando pensava casar e estabelecer-se lá. Respondeu que tinha saído à meia tarde e que se tinha dirigido ao edifício municipal onde concluiam os matrimónios. De repente tinha sentido que o seu coração se oprimia enquanto tudo se voltava sombrio ao seu rededor. Muito inquieto, abandonou o lugar imediatamente e chegou ao porto, onde encontrou um barco para Sevilha. Embarcou no dia seguinte e chegou de manhã, deixando todos os seus assuntos e a sua bagagem em Xerez. Admitiu que desconhecia a razão do seu comportamento. Vi-a realizar numerosos milagres"

Ibn Arabi dá conta de fenômenos espirituais, de telepatia ou de experiências paranormais com bastante naturalidade. Para um leitor actual pode resultar difícil de crer muitas das cousas que conta mas Ibn Arabi mostra como o mesmo problema se dava na época na que ele vivia, e teve amargas polémicas com teólogos racionalistas que reduziam a Misericórdia divina a uma árida especulação de princípios e moralismos, diminuindo a grandeza da relação humana perante o mistério do ser.

Numa ocasião encontrava-se em Tânger onde compus um poema que não chegou a escrever, sob um estado de inspiração e degostação espiritual. Vários meses mais tarde encontrava-se em Sevilha com um grupo de amigos. Então alguém recitou o seu poema. Intrigado Ibn Arabi perguntou de quem era esse poema e responderam-lhe que era dele. Perguntou como sabiam isso pois não lho tinha revelado a ninguém. Disseram-llhe que uns meses atrás um homem que passava recitou o poema entre um grupo de gente. Perguntaram-lhe de quem era o poema, pois gostaram muito dele, e o homem disse-lhes:

- O poema acaba de ser composto por Mohiudin Ibn al Arabi.

Aprenderam-no de cor até que finalmente o homem se perdeu entre a multidão.

Ibn al Arabi fala também da especial dureza com que era tratado perante os outros companheiros por um dos seus mestres, até o ponto de que os seus amigos chegaram a pensavar que não tinha futuro nenhum no caminho. Conduta que não é inusual nos mestres para com aqueles que possuim verdadeiros dons para o caminho e que está dirigido à verdadeira proteção do discípulo. A negativa a reconhecer publicamente os logros do discípulo contrasta com a sua experiência interna, que não encontra eco para a vaidade ou a autocomplacência. É algo essencial mas que só se aplica aos verdadeiros discípulos, pois carece de sentido actuar assim com pessoas que só o podem interpretar como uma questão pessoal. Não acontece assim com o discípulo porque este tem experiências genuínas que lhe fazem sentir a validez e honradez do seu mestre.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Layla no Jardim Botânico.



Há doze anos que morei em Lisboa. Foi por estas datas, em Janeiro, que me instalei na cidade pois antes vivi uns meses na Costa da Caparica. Costumava ir à Universidade Clássica ou à Biblioteca Nacional onde lia e apanhava apontamentos sobre José Marinho, a quem dedicava os meus estudos. Mas nem sempre era fácil. Na minha cabeça havia muitas mais cousas que demandavam a minha atenção, entre elas uma Teoria Vegetal da Humanidade. Sei que o título é um pouco pomposo porque nunca passou de um esboço, esboço que conservo algures mas que nem poderia dizer exactamente onde. A ideia básica era que o ser humano podia ser compreendido melhor (no seu mundo interior) a partir do conhecimento das plantas que dos animais. Parecia-me que os processos evolutivos e de crescimento, as conexões subtis, a comunicação, a alquimia fotosintética, a percepção do ambiente ou até a sexualidade tinham nas plantas modelos mais interessantes que no mundo animal (que reconheço que pode ser também fascinante). Deste jeito percebia ao homem como uma planta que caminha, uma árvore que caminha mais exactamente. Não vou agora estender-me sobre o tema pois as suas ramificações são infinitas. Poderiamos começar pela própria palavra grega phisis e reinterpretar a filosofia aristotélica não desde uma base lógica mas botánica. Não foi o seu discípulo Teofastro o que se dedicou ao estudo das plantas de um jeito sistemático e científico?

Havia toda uma tropologia, toda uma retórica e imagética que ligava com o mundo vegetal de um jeito tão íntimo através dos poetas, da música, ou do pensamento que em certo sentido aquilo era, na altura, o meu monotema obsesivo. Podiamos distinguir, por exemplo, uma sexualidade vegetal e outra animal. Animais que simbolizariam um eros vegetativo como o cervo ou o cavalo enquanto outros envolveriam uma sexualidade mais carnal e menos (paradoxalmente) sensitiva. Isto levava-me ao problema do canibalismo envolvido em algumas leituras de Teixeira Rego, muito interessantes, mas que eu procurava entender numa ordem simbólica mais elevada e menos positivista. Assim haveria um "canibalismo" vegetal e espiritual bem diferente do outro animal e carnal. Como nos povos primitivos, onde existe uma participação da essência ancestral. Pensava em Húmus de Raul Brandão, nas imagens dos trovadores, na Eucaristia, nas plantas enteogénicas como o peiote ou o matema (ayahuasca), e muitas mais relações que agora não tenho à mão.

Este tema reiniciara-se após um certo tempo e voltou a mim através do que foi a minha descoberta, casual em aparência, do Jardim Botânico da Universidade, situado perto da Praça de Príncipe Real. Um dia que me sentia especialmente inquieto na Biblioteca decidi apanhar o metro até ao Rossio e começar a deambular pela Baixa. Sentia uma premura e uma inquietação inusual. Cheguei a Prícipe Real e fiquei um tempo por ali até que percebi que algo "tirava" de mim numa direcção determinada, que me levou ao Jardim Botânico. Ao chegarem ali a minha inquietação parou de súbito e o meu caminhar começou a se fazer lento e pesado, comecei a carregar-me como se fosse uma bateria esvaziada. Permaneci ali durante uma hora ou algo mais. Depois voltei para a Costa da Caparica onde vivia. Não podia deixar de ver certo tipo de relações humanas (as habituais) como formas de canibalismo puro e duro, sem compaixão alguma. Pode que aqui tivesse mais presente a Oração ao Pão de Guerra Junqueiro, e ligava-se bastante bem ao que era o meu estado interior de aquele momento.

Isto foi o inicio das minhas frequentes visitas ao Jardim Botânico.

Não posso aqui dar conta da quantidade de pensamentos, provavelmete de parvoíces também, que se passaram nesses tempos pela minha cabeça mas, quem sabe?, pensar significa também pensar muitas asneiras.
Tudo era para mim algo mais que literal, tudo era uma metáfora que enviava a outra cousa. Suponho que poderia ser as delícias de um Heidegger ou de um Derrida. A própria palavra, a semântica, era de facto uma semente e ja estavamos outra vez no tema!

Uma tarde estava eu sentado num banco, era finais de Abril ou princípios de Maio, no Jardim , quando uma rapariga veio a mim e perguntou-me:

- Where´s the exit, please?

A saída estava perto mas começamos uma conversa. De inicio tive uma sensação vagamente familiar e surpeendeu-me que fala-se em inglês pois parecia portuguesa. Pensei que quiçá me relacionasse com alguém de fora, o que seria estranho, pois posso passar por português sem dificuldade. Mas ela era da Suiça e sentiu-se muito louvada quando eu lhe disse que parecia portuguesa. Ela gostava de Lisboa, do ambiente, da evocação, de certa sensação antiga e, claro, de algo tão diferente à civilizada Suiça.

A certa altura, já saindo do Jardim Botânico, perguntei-lhe o seu nome:

-Layla, disse-me.

- Layla?, repeti, como não acreditando no que tinha ouvido.

- Sim , Layla. E foi quando me disse que os seus pais tinham sido hippies numa época, e puseram-lhe aquele nome exótico.

Caminhei com ela durante uns minutos mais e ,de súbito, descobri qualquer desculpa para me ir. Ela ia ao encontro de uma amiga, e pareceu-me razoável despedir-me perto da Brasileira. Os meus passos encaminhavam-se para a Mouraria. Os dela perderam-se rua abaixo, pois nunca mais a voltei a ver.
Caminhava para a minha casa e pensava onde estava o êxito, a saída, o exitus, o sucesso. Pensava em Layla, que é a noite, a negridão, a verdade, a morte. E pensava nessa sensação de próximidade familiar que me tinha transmitido Layla, como se me lembrasse minha avó , então já falecida, minha avó Lala. Este era o nome que eu lhe tinha posto ao ser incapaz ,quando criança, de dizer abuela.

E toda essa rede semântica caminhava pela minha cabeça formando um claro e profundo sentido que, porém, tinha surgido de um mero acaso no Jardim Botânico com uma rapariga que estava longe de conhecer o alcance das minhas meditações?

Ou... quiçá não?

PS- Em árabe As Mil e uma Noites é Alf Layla Wa Layla mas é também uma codificação segundo a aplicação do sistema Abjad que significa A Mãe das Lembranças, a Matriz da significação.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

O patriotismo de Hatim Tai


Rustam Çiçek estava especialmente alegre quando, inesperadamente, o seu amigo Ibrahim aparecia. Ibrahim fazia alguns gestos pomposos, uma pantomima de reverências e cortesias que imitava a forma decadente de muitas relações sociais nos ambientes literários e culturais da época. Çiçek e Ibrahim riam e começavam a beber um café tras outro desenvolvendo estranhas conversas que às vezes pareciam superficiais enquanto outras eram interrompidas por longos silêncios em que intercambiavam duas ou três frases em toda uma hora ou uma tarde. Pareciam estar dedicados a um estranho jogo que só eles conheciam, contemplando tudo o que se passava no café, as conversas, os comentários, os incidentes, as entradas, as saídas, as personagens. Que veriam eles aí? O seus olhares eram, porém, significativos.

Os brilhantes e negros olhos de Ibrahim mostravam uma faísca súbita quando sorria, o que era habitual nele. Era a sua característica mais pessoal: o seu sorriso aberto, de franqueza e hospitalidade. Ninguém podia imaginar que nessa percepção súbita pudesse ocultar-se um passado de sofrimentos e dificuldades notáveis. Como ele dizia: "Ter presente o sofrimento passado é simples ingratidão". Ao que Rustam Çiçek respondia: "E nós não somos ingratos!"

Uma tarde um grupo de "activistas" acercou-se à mesa onde Rustam Çiçek e Ibrahim conversavam e fizeram-lhes uma pergunta súbita e inesperada.

- Çiçek, que é para ti a pátria?

Depois dum silêncio prolongado, Çiçek respondeu:

- A pátria, queridos amigos, é um recôndito lugar do coração, habitado de antigas palavras e antigas nostalgias, de memórias natais. A pátria só existe para quem foi exilado e vaga longe do seu lar. A pátria é aquilo ao que sempre temos que renunciar para que não se parta a criança em dous em presença de Salomão. A pátria, amigos, é a verdade alheia a todos os patriotas da mesma maneira que as crenças são o véu de todos os crentes perante a sua religião. A pátria é um território incógnito para Estados e Nações como Babilónia é alheia a Sião.

- Então, Çiçek, tu não es um patriota!

- Santa Simplicidade, amigos!. Como poderia ser? Não deveria sentir vergonha uma pessoa honesta ao ser chamada patriota. Não deveria permanecer silencioso velando pelo segredo do seu coração e não cair na pomposa adulação dos filisteus. Porque tanto ardor e tanto entusiasmo, amigos. E que não sabéis amar?

As palavras de Çiçek cairam como uma pedra. Até Ibrahim ficou surpreendido e sério. Não porque não compartisse as palavras de Çiçek mas porque intuia que podiam ter problemas ali mesmo.

Todo o café olhava já para Ciçek e Ibrahim. Foi, então que Çiçek começou a contar uma antiga história:


- Pode que já vos tenham contado esta história ou pode que não. Mas hoje terá um sabor novo para todos nós. Escutai, a história de Hatim al Tai, o homem mais generoso que jamais existiu.

Quando o famoso Rei Hatim Tai soube que um monarca vizinho preparava a invasão do seu território compreendeu que por muito que se esforça-se em deter o ataque, afinal seriam derrotados, tal era a superioridade do exercito atacante. Deliberou profundamente que estratégia seguir e finalmente tomou uma decisão. Chegou a um trato com o rei vizinho: deixaria o trono e assim se evitaria um derramamamento de sangue mas o novo rei se devia comprometer a manter a situação de direitos e propriedades das que gozavam os seus súbditos.

Hatim Tai fugiu para o monte e tomou o manto dos dervixes.

Muitos súbditos guardaram a boa memória do rei mas não todos. Alguns começaram a pôr em dúvida os seus actos, pensando que tinha escolhido uma forma fácil de fugir aos problemas sem assumir a verdadeira responsabilidade do seu cargo. Outros não falavam mal dele mas os seus corações arrefeceram como crianças que não compreendem a ausência do pai que deve trabalhar longe para sustentar a família.

A fidelidade e a lembrança que na maioria dos súbditos ainda permanecia firme fez ao rei usurpador proclamar um bando em que se ofereciam mil dinares de ouro ao que capturasse a Hatim Tai. No fundo, era uma permanente ameça ao seu poder e já estava arrependido de ter feito trato algum.

Um dia Hatim Tai caminhava pensativo pelo bosque quando ouviu uma conversa:

- Se tão só tivessemos a sorte de capturar a Hatim Tai, seriamos ricos e felizes para o resto das nossas vidas, especialmente a tua, pois eu já tenho pouco tempo por diante.- dizia um velho lenhador à sua jovem esposa.

- Deverias sentir vergonha, disse ela, de falar desse modo do nosso rei. Ele que se sacrificou a si mesmo pelo nosso bem-estar. Uns poucos mais que pensem como tu e a sua vida terá sido em vão

- Essas palavras são muito belas, mas quem sabe se o não fez pelo seu próprio interesse?. Es muito nova e muito ingénua.

Então Hatim Tai, apresentou-se diante do lenhador e disse-lhe:

- Aqui estou. Eu sou Hatim Tai. Leva-me diante do teu rei e obtém o ouro que tanto preças.

- Oh, Hatim. Tu es o meu rei. Como poderia eu fazer isso?. Perdoa as minhas palavras de fraqueza e estupidez.

Mas nesse momento apareceram um grupo de soldados e apressaram-nos, levando-os todos à corte. O lenhador ia cabisbaixo e sem dizer uma só palavra, como se esperasse uma sentença de morte.

Quando chegaram ao palácio os soldados pretendiam ser os captores de Hatim Tai e assim cobrar a recompensa. Produziu-se uma pequena confusão, quando Hatim Tai pediu falar:

- Majestade, penso que eu devia ser também ouvido. Foi este velho lenhador que me capturou e deve ser ele quem cobre a recompensa.

O lenhador ficou estupefacto. Começou a falar:

- Majestade, não foi assim que aconteceu. E contou como Hatim se tinha entregado depois de ter ouvido a conversa com a sua mulher.

O novo rei estava assombrado. Falou ainda gaguejante:

Oh!, Hatim, que posso fazer?. Se te mato viverei à sombra da minha mesquindade escurecido pelo lenda da tua generosidade, que se engrandecerá. Se te encadeio será um constante motivo de rebelião, que acabará finalmente comigo, pois ninguém pode dominar de jeito duradouro sem a legitimidade do seu povo. Por favor, recupera o teu trono e aceita-me como amigo, de jeito que a minha riqueza seja que acudas aos meus convites, pois ninguém pode competir com os teus.

Hatim sorriu e disse:

- Está bem, aceito o trono - e pondo a mão sobre o queixo, disse:

- E pensarei o dos teus convites!

Muitos sorriram no café. Mas alguns dos “activistas” disseram, entre dentes:

- Contos para crianças. Que terá isso a ver connosco!

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Artesanato filosófico: texto e contexto.




Rustam Çiçek gostava de parar pelos cafés de Istambul. Entre gatos e redes por arranjar o poeta- filósofo conversava às vezes com os amigos ocasionais que o visitavam. Os guindastes, as gaivotas, o cheiro mesturado do mar e o peixe apodrecido, restos de petróleo, azeites...e o café faziam um cenário filosófico adequado.


- A filosofia não existe como história. Para nós os filósofos não são mais do que materiais para compor um novo tapete. Platão, Spinoza, Kant. Que são? Um material disponível como se fossem novelos de lã que é preciso tecer harmoniosamente de jeito absolutamente pessoal. Eles podem ser fios entretecidos e trabalhados com tinturas adequadas. Um fio platónico, outro de Spinoza, um outro de Nietzsche. É preciso entretecê-los bem, fazendo uma trama densa, que possa suportar as inclemências do tempo mas, sobretudo, desenvolvendo harmonia e beleza.


- E valem todos os materiais?


- Em teoria sim. Na prática há que ser muito experto. Por exemplo, Hegel é um perigo e um risco de destruição dos materiais. Esta feito com elementos magnéticos que actuam como um buraco negro. Se tiveres a "Fenomenologia do espírito" na mão podes comprovar isso, parece que está cheia de ferro imantado, pólo positivo contra pólo positivo e negativo contra negativo. É um acto de força monstruosa, não há harmonia nem beleza excepto a que algumas pessoas encontram na força e no poder. Mas poderia ser usado (em proporções ínfimas) por pessoas que estejam dispostas a criar certos efeitos especiais.


- Não compreendo bem o que queres dizer, é tudo críptico de mais.


- Sabes? A verdadeira filosofia é mais um trabalho de mulheres. É preciso observar o que as mulheres fazem, a maneira em que tecem a vida sem serem as protagonistas. Sempre falamos de filósofos homens mas aí não está a verdadeira filosofia. Podem ser condensações ou nódulos, mas falta o con-texto (o tecido completo).


-Não é algo importante.


-É algo essencial, o que é diferente. Uma textura possui diferentes grossores, utilidades, colorações. Como reduzir isso a uma questão puramente formal?


- Então as perguntas não têm respostas?


- Fazer-se responsável, dar uma resposta, é como fazer uma obra de arte. É algo absolutamente pessoal. Há perguntas e respostas mas são as íntimas dum dialogo próprio. Muitas perguntas estão carregadas como dados trucados. Uma falsa pergunta leva necessariamente a uma falsa resposta.


- Ás vezes a falsidade está na exigência de certas perguntas a ter uma resposta.


- Como quando Kant pretende que digamos a verdade a uns assassinos sobre o que está escondido na nossa casa.


-Mais ou menos.


Alguns homens arranjavam velas no cais de Istambul enquanto Rustam Çiçek deixava que o fumo do seu cigarro desenha-se estranhas formas, hieroglifos do Bósforo. Recordava alguma ocasional frase de Heráclito:


"O Senhor que é do Oráculo de Delfos não diz nem oculta: faz sinais"


Rustam Çiçek desaparecia entre barcos e tabaco, entre gatos vadios como as suas conversas sem princípio nem fim.


segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Três estórias de Domingo a preto e branco.

A José Blanco Regueira, in memoriam.



As três histórias que se encadeam a continuação têm um estranho sabor rocambolesco, como tiradas dum pesadelo. Lembram esse pesadelo que era The man who was Thursday ou algum outro conto do genial Chesterton, e é por esta razão que decidi modificar o nome do protagonista destas histórias pelo de Domingo, o misterioso protagonista do romance citado.

Estamos a finais dos anos sessenta e o meu amigo Pepe, já falecido, pertence a um escuro grupo maoísta. Com ele um pequeno número de inseparáveis amigos, entre os que se destaca Domingo, um catalão carismático e inteligente, de extraordinário valor, que percorrera quase todos os cárceres de Espanha sem nunca ter revelado nada à polícia dos seus amigos, apesar das torturas sofridas. Homem autodidacto e sem estudos que era um caso de audácia e recursos. Foi graças a ele que conseguiram fugir de Espanha e assim chegar a França, onde o meu amigo acabaria por estudar e doutorar-se em Filosofia pela Sorbona. A meados dos anos setenta Pepe foi nomeado catedrático de Metafísica na universidade de Toluca em México

Estória um

Domingo e um cigano amigo arrastam uma saca cheia de propaganda subversiva, uns três mil panfletos que acabam de retirar da imprensa. Internan-se por um bosque quando percebem que a polícia os está a seguir. Depois de carregar durante vários km. decidem atirá-la por uma encosta pedregosa, cheia de arbustos onde poderia ficar oculta para recuperá-la mais tarde. Pouco depois são detidos pela polícia e conduzidos à comissaria. São levados a quartos separados onde começam a utilizar os mêtodos tradicionais dos interrogatórios. O cigano "canta" ao instante enquanto Domingo nega-se completamente a dar informação alguma. Um polícia achega-se a Domingo e diz-lhe:

- Vamos ir aonde nos indicou o teu amigo. Tu dizes que não sabes nada disso. Como encontremos os panfletos, prepara-te porque não te vai reconhecer nem a tua própria mãe.

Domingo começa a preparar-se para o pior e a sua única esperança parece ser que o tempo não passe. Entretanto dedica-se a recitar poemas aos polícias em catalão.

Mas realmente passam várias horas quandos começa a sentir uns gritos no quarto do lado:

-Juro que é verdade. Não sei que aconteceu mas o que eu disse é verdade, os panfletos estão no lugar indicado.

- Calla, gitano de mierda! Mentirosos são todos os da vossa raça! Agora saberás o que é bom- dizia o polícia, que batia no coitado do cigano tudo o que podia.

Alguém tinha passado e levado os panfletos daquele lugar infame e pedregoso.

Domingo respirou tranquilo mais uma vez.


Estória duas

Domingo está cansado do idealismo comunista. Decide tomar a justiça pela sua mão e roubar directamente ao capital e mais particularmente aos capitalistas, sem teorias grandiloquentes. Aplica uma radical Navalha de Ockham mesclada com um socialismo libertário de carácter individualista.
Estamos a princípios dos anos setenta em Buenos Aires. Domingo encontra-se com o mais importante falsificador de moeda de Argentina. Um homem imenso, muito alto e grosso, cuns olhos pequenos e brilhantes e um nariz longo e afiado. Com certo parecido ao Marquês de Sade da última época.

-As cousas estão muito mal agora. O problema é conseguir o papel. Se tivermos papel seria possível mas esse é o problema: o papel!

- Tu diz e eu consigo-

- Não é tão simples, Domingo. Só na Suiça. Mas isso era antes. Agora está tudo absolutamente controlado. Não há jeito. Esquece o tema.

- Suiça?. Muito bem. Lá vou. E não volto até consegui-lo. Podes estar certo!

- Não vais, Domingo. Hoje não é possível. Acredita.

Mas Domingo foi a Suiça e um mês mais tarde estava de volta com o papel.

O falsificador não dava crêdito. Era um milagre:

- Somos ricos, che!

E foram celebrar toda a noite o seu sucesso. Noite de vinho e rosas até o amanhecer.

No dia seguinte Domingo apresenta-se na casa do amigo com o fim de começar o plano de trabalho. Chama uma, duas, três vezes à porta. Começa a pôr-se nervoso e a pensar numa traição do amigo, uma súbita fuga empapelada mas, de repente, aparece uma mulher vestida de negro, demacrada e chorosa. Trata-se da viúva do falsificador, que acabava de falecer umas horas antes.
Com este motivo Domingo escreveu um poema que deve ser lido com sotaque argentino:


Tengo papel para escribir
una carta de amor o cien
tengo lo que tenía que tener
pero todo sobra ahora
mi querido partener.

tengo papel suízo
como un bollo para cocer
pero voy a hacer barcos
haré barcos de papel
mi querido partener

y diré al tranquilo paseante
ahí va el dinero sonante
he perdido hoy contante
lo que no tenía ayer
mi querido partener

daré papel a los pobres
para envolver quesos suízos
cantaré y bailaré "cambalache"
me pondré dientes postizos
mi querido partener

haré un carnaval gauchesco
con volandas de papel
me comeré el dinero
que aún tengo por hacer
mi querido partener

danzaré una tarantela
un tango burlón del ser
dejaré la pasta suíza
para la novia de ayer
mi querido partener


Domingo e a viúva dançam um tango sobre o corpo ainda têpedo do falsificador.

Estória três

Domingo instala-se em Buenos Aires. Cria uma Agência, a ANT (Agência de Negócios Transatlânticos), supostamente dedicada a todo tipo de negócios com Europa, Canadá e os EE.UU. A viúva do falsificador actua como secretária. Rapidamente localiza seis sócios mais. A sua identidade é agora a de Abdel Rahman Ibn Rachid al Hatim -Tai, um árabe espanhol, filho de multimilionários radicados na Costa de Sol. Trabalha, secretamente, para o governo espanhol, o que explica certo mistério das suas actuações.

Opera a várias bandas com diversos bancos argentinos um negócio grandioso no que estão implicados vários países. A discreção deve ser absoluta porque boa parte do dinheiro obtido é para financiar actividades que os estados implicados não poderiam, por nada do mundo, fazer públicas sob risco de desestabilizar a política interna. Parte dos fundos são, segundo ele, para combatir o terrorismo.

Chega o momento esperado. Domingo é convocado para uma reunião com vários directores de bancos e financieiras onde se vai assinar um cheque por valor de 7 miliões de dólares (dos anos 70). Mas há uma advertência: antes terão que fazer um chamado telefónico a um banco de Califórnia que garantirá a existência de fundos e avais e só então assinarão o cheque. Mas no banco de Califórnia Domingo tem uma conta de 100 dólares.

Domingo comunica a situação aos seus sócios e entram em pânico. A solução proposta por todos é fugir antes de que se descobra o pastel. Ainda estão a tempo. Domingo nega-se. Como possuído por uma súbita inspiração diz:

- Irei lá. Não se passará nada. Telefonarão e a linha estará ocupada. Finalmente se cansarão e assinarão o cheque. Já passei por todos os cárceres de Espanha, não me importaria nada passar por um cárcere argentino!.

E foi

Domingo estava de bom humor, falava com simpatia e dava uma sensação de total confiança. Um homem tentava comunicar-se com o banco californiano, mas não havia jeito. Depois de quarenta minutos de tentativas o presidente dum dos bancos mais importantes fez a proposta de assinatura.
E assinaram o cheque: sete miliões de dólares. Um milião de dólares para cada sócio

Domingo instalou-se em México onde comprou um rancho que depois alugou para uma iniciativa de socialistas libertários.
Tem uma fotografia com Ronald Reagan e outra com George Bush pai.

O que não sei é se se levou a viúva consigo.

PS- para ouvir Cambalache

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

PANADERIA ANTONIO LOZANO

A meu avô, naturalmente.


Lembro como meu avô fazia verdadeiros esforços por ser um homem sério. Ainda aos seus oitenta e cinco anos ia comprar ele só à loja para se fazer o almoço. Estava viúvo e mantinha uma autonomia invejável. Mas o que lhe preocupava é que era incapaz de estar num lugar sem acabar por contar uma anedota, e criar uma situação engraçada de algum tipo. Algumas vezes era uma gaita na festa e isto, por momentos, chegava-lhe a pesar. Quando reflectia só na casa chegava então à firme convicção de que não podia seguir assim . No dia seguinte saía à rua dirigindo-se à loja ou ao supermercado (ou à tabacaria) e quase não pronunciava palavras, contentando-se com monosílabos, fingindo uma seriedade da que continuamente se tinha que recordar para evitar cair no que considerava uma perda de personalidade. Como ele costumava dizer:
- O que a mim me salvou - e juro que não sei ao que se referia com isto- é que sempre fui mui infantil.
Mas agora com tantos anos às costas a cousa tinha que levar outro rumo. O homem madura, não é?
Saía do portal um dia mais em que não podia continuar a ser o que era, decidido a mudar o seu carácter e a sua maneira de se apresentar no mundo. O certo é que vê-lo sério metia medo e, se não abrisse a boca, facilmente poderia poupar-se de muito contacto humano, que não iria gratuitamente importuná-lo. Mas aquele dia as cousas estavam destinadas de outro modo.
Justo em meio da rua, à saída da sua casa, uma furgoneta (perua) que punha em letras bem grandes.


PANADERIA ANTONIO LOZANO


E dentro, solitária, uma senhora a remexer nuns papéis no lado do co-piloto.
Achega-se meu avô e, todo sério, de jeito imperativo, diz:

-Saia daí, senhora. Esta furgoneta é minha.
- O senhor está tolo. Esta furgneta é do meu homem e minha. Que está a dizer?.

A mulher realmente estaría a pensar que aquele velho enlouquecera.

Mas meu avô, cuma parsimónia digna e teatral, tira o seu Bilhete de Identidade ( DNI) e mostra-o:

- Veja, que põe aqui?. An-to-nio Lo-za-no. E também sou padeiro.

A mulher começa a perceber que tudo é uma pantomima. Relaxa. E começa a rir.
- Aí vem meu marido. Que casualidade!

Era certo, meu avô tinha sido padeiro toda a vida. Como ele dizia, tinha trabalhado em fornos romanos. Isso não era uma delicadeza.
Enfim, o esposo da mulher era Antonio Lozano também. Risos, surpresas e convites a passar por Carral, de onde era o padeiro e onde havia outros da família que se dedicam ao mesmo. A verdade é que nunca antes se tinham encontrado e nunca mais se encontrariam. Mas meu avô chegou aquele dia à nossa casa contando toda aquela história, que por circunstâncias não queridas, lhe fez claudicar ainda durante uns dias da sua seriedade impostada.
Mas a história não acaba aqui. Há ramificações.

Passaram uns doze anos e eu encontro-me no Hospital Materno-infantil da Corunha. O dia anterior, o cinco de Março, nascera o meu primeiro filho, também de nome António. O meu amigo e poeta Pedro Casteleiro sabe-o bem porque ele nasceu o mesmo dia, só que trinta anos antes.
Estou no hall do hospital, num momento de descanso em que leio o jornal. Chego ao obituário, à secção de necrológica e, de repente, reparo numa:




R.I.P

ANTONIO LOZANO
(Panadero de Carral)
Falleció el dia de ayer, después de haber recibido los Santos Sacramentos y los Auxilios Espirituales

Meu avô ainda estava vivo e conheceu a história, que de algum jeito fechava um círculo.
Morreria quatro anos mais tarde, aos 98 anos, um 22 de Maio de 2002, o dia de anos do meu outro avô, e ainda lembro as frases que repetia nos últimos tempos:

- Toda a vida esperando. Esperando a qué?

E também

- Não chego aos 100, como la Reina Madre, porque não me queréis dar Genebra.

Enfim, como para ser sério, avô!

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Reparando velas


A Nau arriva ao pequeno porto . É preciso uma paragem. Breve, quiçá, mas suficiente para recompor algumas velas, fazer pequenos ajustes. Beber umas cervejas entre velhos piratas e corsários.Alguns até nos piscam o olho . Conhecemos esses homens das bandeiras negras, velhos marujos, marinheiros de olhos sonhadores?. Cantemos hoje na taberna. Reparemos velas.
Também há assuntos que nós chamam e que nos obrigam a trabalhar na quadrícula, entre planos e cálculos. Cousa chata mas necessária. Em breve, voltaremos a navegar. Ajustar a velocidade, fazer um rodeio, quiçá uma navegação de cabotagem. Que os marujos, agora, caminhem e se percam pela cidade. Moderar o entusiasmo. Aprender. Há material para isso. Entretanto:


Música, Maestro!





terça-feira, 6 de janeiro de 2009

O gambito de Mikhail Tal

Para meu irmão Sergio, que me contou a estória.


De súbito Mikhail Tal recordou a frase do poeta infantil Kornay Chukosvki:

"Oh, que tarefa tão árdua foi arrastar o hipopótamo fora do tanque"

Tal encontrava-se numa dificil situação perante o Grande Mestre Vaisukov. A partida tinha chegado a um ponto em que segundo as suas próprias palavras:

"As ideias amontoavam-se. Eu tinha trasladado uma subtil resposta ao meu oponente que tinha funcionado numa ocasião, a outra situação onde naturalmente resultou bastante inútil. De maneira que tinha a cabeça cheia dum milheiro de movimentos de todas classes, e o do famoso "leque de variáveis" do que todos os treinadores recomendam que recortes os ramos mais pequenos, que nesse caso se expandiam cuma velocidade incrível"

Mas o verso infantil retornava a Mikhail dum jeito obsesivo e imperativo:

"Oh, que tarefa tão árdua foi arrastar o hipopótamo fora do tanque"

Enquanto o público via um Tal absolutamente concentrado na partida a realidade era outra. Pela cabeça de Tal um hipopótamo tinha tomado o taboleiro e o que o preocupava realmente era averiguar de que maneira se poderia tirar o animal do tanque. Por ali apareciam guindastes, helicópteros, escadas de cordas e os mais diferentes artilúgios técnicos. Passavam já quarenta minutos e o tempo esgotava-se até que voltou à partida. De súbito começou a ver tudo mais fácil e claro. Tudo parecia encaixar, não num plano de cálculo mas numa pura sensação intuitiva.
Mikhail Tal fez, finalmente, o movimento esperado e sacrificou o cavalo.

Todos os jornais do dia seguinte diziam mais ou menos:

"Depois de calcular pelo miúdo mais de quarenta minutos Mikhail Tal sacrificou um cavalo que o deixa numa posição prometedora..."

Pode que assim se escreva a história, não sei. Mas o que de certo vos posso dizer é que Mikhail Tal era, de feito, um grande filólogo. Que um hipopótamo é um "cavalo de rio". E isso explica bastante, não é?

Pensas que poderiamos dizer?:

- Caso Resolto!


"Oh, que tarefa tão árdua foi arrastar o...

domingo, 4 de janeiro de 2009

Ondulação e sincronia: a comunicação (I)


Criar um sistema de comunicação que não se sustente nos processos discursivos, estritamente racionais, sequênciais, que vão de A a B, que falam de causa e efeito desse jeito tão unidimensional é uma experiência única que atenta contra a rigidez da tradição, especialmente da ocidental. A mente ocidental cria muros invisíveis que continuamente fazem que a comunicação fique ancorada ou bem que se realize compulsivamente sobre temas obsesivos, querendo impor linhas de pensamento, temas a tratar, debates, estruturas dialógicas, enfim todo um imenso edifício de elementos pesados que actuam como grilhos nos pés, cadeias nas mãos. É algo assim como um movimento no plano quando poderia haver três dimensões. O pensamento não é capaz de abandonar a teologia, mesmo que se apresente como crítico da teologia, como ateu, como o que quiser. Tudo se joga num espaço fechado, denotativo. Os mesmos procesos artísticos e poéticos, que têm por si próprios uma virtualidade de comunicação essencial, são utilizados como objectos de consumo e decoração, de esteticismo, não aportam nada á construção do conhecimento e da comunicação mas ao consumo e ao valor. Há aqui um profundo analfabetismo, uma imposibilidade de ler mensagens que se estruturam sobre outra maneira de conceber a comunicação. Todo o pensamento e a filosofia ocidental descansam numa justificação permanente, é um contínuo discurso justificativo. Está ancorado na culpa ou na acusação.
Por isso é interessante o conceito de onda e de sincronia. Uma onda implica um movimento em que se emite baixo uma determinada frequência cum sentido dos tempos e dos ciclos. Chega a um ponto e volta a recomeçar tratando diferentes temas mas sob a mesma frequência, criando um patrão que apela ao ritmo e a uma outra sensibilidade. A sincronia apela a elementos simultaneamente heterogêneos que confluem numa conexão holística mas que podem não ter semelhança entre si: como os elementos de uma pintura, uma fotografia. Essa co-presença brinda-nos uma imagem , como um arquipélago de ilhas. Para além disso está o que Jung chamava de sincronicidade e que poderiamos chamar também de co-incidência.
Provavelmente as línguas com sistemas de representação ideográfico possam reflectir melhor aquilo que aqui quere ser exprimido.Como diria Wittgenstein, está o que se mostra e está o que se diz. E são cousas diferentes que é preciso tecer.


sábado, 3 de janeiro de 2009

El Pecado



Há um vinho na Ribeira Sacra, no sul da província de Lugo, limítrofe com Ourense que se chama El Pecado. É um vinho do que quase não se vendia nada até há uns meses. Isto vinha dizendo um produtor da zona entrevistado na Radio Galega, enquanto conduzia o meu carro pela auto-estrada. A minha mente começou a divagar sobre as causas de que um bom vinho (segundo defendia o produtor) tivesse tão pouca aceitação. Pensei que quiçá houvesse aí um problema de marketing. Os galegos, havia aqui uma explicação subliminal e psicológica, não se sentiam cômodos perante um convite tão explícito a pecar. A nossa mentalidade gosta mais das sugerências veladas. Sempre é mais interessante. Mas o produtor continuava explicando que chegou por aí um americano, um tal "não sei que" Parker que deu uma alta qualificação ao vinho numa guia e, agora, o vinho está totalmente esgotado. É impossível conseguir uma garrafa. O produtor ria, e dizia que a mentalidade da gente é absurdamente superficial porque a qualidade do vinho era a mesma com estrelas que sem estrelas. Eu pensava se o vinho seria tão bom ou simplesmente o americano se deixou influir pela etiqueta, El pecado, e gostava de sentir-se um pecador perdido na Ribeira Sacra. Essa forma ingénua e directa tipicamente americana. Pode que até fosse conhecedor dos versos de Khayam ou Li-Po. Pode que tivesse lido O Banquete.
Eu quase não ouvia o que me dizia o meu filho do partido de handebol que acabava de jogar. Pensava como era possível que um americano fizesse os galegos mais dados a cair em El pecado.
Eu próprio vivi pela zona quase dous anos e não tinha ouvido falar dele mas já tenho curiosidade.
Enfim, cousas da vida.
E, por certo, isto não é marketing encoberto. Fique claro.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Pensamentos para repensar



É bastante óbvia a falsa humildade dos gurus. Ninguém repara, contudo, na falsa arrogância do mestre.




Perguntado um sábio sobre os falsos mestres, respondeu:
-Há falsos mestres mas eu tenho conhecido ao longo da minha vida mais falsos discípulos que falsos mestres"



"A melhor mentira é a que contém mais quantidade de verdade mas, certamente, não a pode conter toda"





quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Pensar



pensei que os teus cabelos fossem trigo
que me trouxe o vento para debicar
pensei que as rosas bravas do jazigo
eram versos de inverno para amar

pensei que a lua pintada nos teus olhos
fosse uma estrela lançada desde o mar
pensei que as janelas sem abrolhos
eram portas secretas ao teu lar


pensei que os teus cabelos fossem trigo
que o vento me trouxe para debicar

(nas tardes de anatólia sou, amiga,
uma rosa de nenhum lugar)

pensei que o mel fosse destino
de corpos destinados a se amar

que as pedras fossem no caminho
antigas lendas para além do mar

pensei sem palavras e sem vinho
deitado junto às vides do lugar

que os teus cabelos eram trigo
enlaçados aos meus dedos para amar...


(- Dizei-me, ó meus amigos,
se pensei, sinceramente,
bem ou mal.)


(De Lua de Anatólia)