segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Três estórias de Domingo a preto e branco.

A José Blanco Regueira, in memoriam.



As três histórias que se encadeam a continuação têm um estranho sabor rocambolesco, como tiradas dum pesadelo. Lembram esse pesadelo que era The man who was Thursday ou algum outro conto do genial Chesterton, e é por esta razão que decidi modificar o nome do protagonista destas histórias pelo de Domingo, o misterioso protagonista do romance citado.

Estamos a finais dos anos sessenta e o meu amigo Pepe, já falecido, pertence a um escuro grupo maoísta. Com ele um pequeno número de inseparáveis amigos, entre os que se destaca Domingo, um catalão carismático e inteligente, de extraordinário valor, que percorrera quase todos os cárceres de Espanha sem nunca ter revelado nada à polícia dos seus amigos, apesar das torturas sofridas. Homem autodidacto e sem estudos que era um caso de audácia e recursos. Foi graças a ele que conseguiram fugir de Espanha e assim chegar a França, onde o meu amigo acabaria por estudar e doutorar-se em Filosofia pela Sorbona. A meados dos anos setenta Pepe foi nomeado catedrático de Metafísica na universidade de Toluca em México

Estória um

Domingo e um cigano amigo arrastam uma saca cheia de propaganda subversiva, uns três mil panfletos que acabam de retirar da imprensa. Internan-se por um bosque quando percebem que a polícia os está a seguir. Depois de carregar durante vários km. decidem atirá-la por uma encosta pedregosa, cheia de arbustos onde poderia ficar oculta para recuperá-la mais tarde. Pouco depois são detidos pela polícia e conduzidos à comissaria. São levados a quartos separados onde começam a utilizar os mêtodos tradicionais dos interrogatórios. O cigano "canta" ao instante enquanto Domingo nega-se completamente a dar informação alguma. Um polícia achega-se a Domingo e diz-lhe:

- Vamos ir aonde nos indicou o teu amigo. Tu dizes que não sabes nada disso. Como encontremos os panfletos, prepara-te porque não te vai reconhecer nem a tua própria mãe.

Domingo começa a preparar-se para o pior e a sua única esperança parece ser que o tempo não passe. Entretanto dedica-se a recitar poemas aos polícias em catalão.

Mas realmente passam várias horas quandos começa a sentir uns gritos no quarto do lado:

-Juro que é verdade. Não sei que aconteceu mas o que eu disse é verdade, os panfletos estão no lugar indicado.

- Calla, gitano de mierda! Mentirosos são todos os da vossa raça! Agora saberás o que é bom- dizia o polícia, que batia no coitado do cigano tudo o que podia.

Alguém tinha passado e levado os panfletos daquele lugar infame e pedregoso.

Domingo respirou tranquilo mais uma vez.


Estória duas

Domingo está cansado do idealismo comunista. Decide tomar a justiça pela sua mão e roubar directamente ao capital e mais particularmente aos capitalistas, sem teorias grandiloquentes. Aplica uma radical Navalha de Ockham mesclada com um socialismo libertário de carácter individualista.
Estamos a princípios dos anos setenta em Buenos Aires. Domingo encontra-se com o mais importante falsificador de moeda de Argentina. Um homem imenso, muito alto e grosso, cuns olhos pequenos e brilhantes e um nariz longo e afiado. Com certo parecido ao Marquês de Sade da última época.

-As cousas estão muito mal agora. O problema é conseguir o papel. Se tivermos papel seria possível mas esse é o problema: o papel!

- Tu diz e eu consigo-

- Não é tão simples, Domingo. Só na Suiça. Mas isso era antes. Agora está tudo absolutamente controlado. Não há jeito. Esquece o tema.

- Suiça?. Muito bem. Lá vou. E não volto até consegui-lo. Podes estar certo!

- Não vais, Domingo. Hoje não é possível. Acredita.

Mas Domingo foi a Suiça e um mês mais tarde estava de volta com o papel.

O falsificador não dava crêdito. Era um milagre:

- Somos ricos, che!

E foram celebrar toda a noite o seu sucesso. Noite de vinho e rosas até o amanhecer.

No dia seguinte Domingo apresenta-se na casa do amigo com o fim de começar o plano de trabalho. Chama uma, duas, três vezes à porta. Começa a pôr-se nervoso e a pensar numa traição do amigo, uma súbita fuga empapelada mas, de repente, aparece uma mulher vestida de negro, demacrada e chorosa. Trata-se da viúva do falsificador, que acabava de falecer umas horas antes.
Com este motivo Domingo escreveu um poema que deve ser lido com sotaque argentino:


Tengo papel para escribir
una carta de amor o cien
tengo lo que tenía que tener
pero todo sobra ahora
mi querido partener.

tengo papel suízo
como un bollo para cocer
pero voy a hacer barcos
haré barcos de papel
mi querido partener

y diré al tranquilo paseante
ahí va el dinero sonante
he perdido hoy contante
lo que no tenía ayer
mi querido partener

daré papel a los pobres
para envolver quesos suízos
cantaré y bailaré "cambalache"
me pondré dientes postizos
mi querido partener

haré un carnaval gauchesco
con volandas de papel
me comeré el dinero
que aún tengo por hacer
mi querido partener

danzaré una tarantela
un tango burlón del ser
dejaré la pasta suíza
para la novia de ayer
mi querido partener


Domingo e a viúva dançam um tango sobre o corpo ainda têpedo do falsificador.

Estória três

Domingo instala-se em Buenos Aires. Cria uma Agência, a ANT (Agência de Negócios Transatlânticos), supostamente dedicada a todo tipo de negócios com Europa, Canadá e os EE.UU. A viúva do falsificador actua como secretária. Rapidamente localiza seis sócios mais. A sua identidade é agora a de Abdel Rahman Ibn Rachid al Hatim -Tai, um árabe espanhol, filho de multimilionários radicados na Costa de Sol. Trabalha, secretamente, para o governo espanhol, o que explica certo mistério das suas actuações.

Opera a várias bandas com diversos bancos argentinos um negócio grandioso no que estão implicados vários países. A discreção deve ser absoluta porque boa parte do dinheiro obtido é para financiar actividades que os estados implicados não poderiam, por nada do mundo, fazer públicas sob risco de desestabilizar a política interna. Parte dos fundos são, segundo ele, para combatir o terrorismo.

Chega o momento esperado. Domingo é convocado para uma reunião com vários directores de bancos e financieiras onde se vai assinar um cheque por valor de 7 miliões de dólares (dos anos 70). Mas há uma advertência: antes terão que fazer um chamado telefónico a um banco de Califórnia que garantirá a existência de fundos e avais e só então assinarão o cheque. Mas no banco de Califórnia Domingo tem uma conta de 100 dólares.

Domingo comunica a situação aos seus sócios e entram em pânico. A solução proposta por todos é fugir antes de que se descobra o pastel. Ainda estão a tempo. Domingo nega-se. Como possuído por uma súbita inspiração diz:

- Irei lá. Não se passará nada. Telefonarão e a linha estará ocupada. Finalmente se cansarão e assinarão o cheque. Já passei por todos os cárceres de Espanha, não me importaria nada passar por um cárcere argentino!.

E foi

Domingo estava de bom humor, falava com simpatia e dava uma sensação de total confiança. Um homem tentava comunicar-se com o banco californiano, mas não havia jeito. Depois de quarenta minutos de tentativas o presidente dum dos bancos mais importantes fez a proposta de assinatura.
E assinaram o cheque: sete miliões de dólares. Um milião de dólares para cada sócio

Domingo instalou-se em México onde comprou um rancho que depois alugou para uma iniciativa de socialistas libertários.
Tem uma fotografia com Ronald Reagan e outra com George Bush pai.

O que não sei é se se levou a viúva consigo.

PS- para ouvir Cambalache

1 comentário:

Anónimo disse...

Blanco fue mi maestro; qué más tienes de él? Mandamelo por favor.
Saludos desde Toluca, México.