sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

O patriotismo de Hatim Tai


Rustam Çiçek estava especialmente alegre quando, inesperadamente, o seu amigo Ibrahim aparecia. Ibrahim fazia alguns gestos pomposos, uma pantomima de reverências e cortesias que imitava a forma decadente de muitas relações sociais nos ambientes literários e culturais da época. Çiçek e Ibrahim riam e começavam a beber um café tras outro desenvolvendo estranhas conversas que às vezes pareciam superficiais enquanto outras eram interrompidas por longos silêncios em que intercambiavam duas ou três frases em toda uma hora ou uma tarde. Pareciam estar dedicados a um estranho jogo que só eles conheciam, contemplando tudo o que se passava no café, as conversas, os comentários, os incidentes, as entradas, as saídas, as personagens. Que veriam eles aí? O seus olhares eram, porém, significativos.

Os brilhantes e negros olhos de Ibrahim mostravam uma faísca súbita quando sorria, o que era habitual nele. Era a sua característica mais pessoal: o seu sorriso aberto, de franqueza e hospitalidade. Ninguém podia imaginar que nessa percepção súbita pudesse ocultar-se um passado de sofrimentos e dificuldades notáveis. Como ele dizia: "Ter presente o sofrimento passado é simples ingratidão". Ao que Rustam Çiçek respondia: "E nós não somos ingratos!"

Uma tarde um grupo de "activistas" acercou-se à mesa onde Rustam Çiçek e Ibrahim conversavam e fizeram-lhes uma pergunta súbita e inesperada.

- Çiçek, que é para ti a pátria?

Depois dum silêncio prolongado, Çiçek respondeu:

- A pátria, queridos amigos, é um recôndito lugar do coração, habitado de antigas palavras e antigas nostalgias, de memórias natais. A pátria só existe para quem foi exilado e vaga longe do seu lar. A pátria é aquilo ao que sempre temos que renunciar para que não se parta a criança em dous em presença de Salomão. A pátria, amigos, é a verdade alheia a todos os patriotas da mesma maneira que as crenças são o véu de todos os crentes perante a sua religião. A pátria é um território incógnito para Estados e Nações como Babilónia é alheia a Sião.

- Então, Çiçek, tu não es um patriota!

- Santa Simplicidade, amigos!. Como poderia ser? Não deveria sentir vergonha uma pessoa honesta ao ser chamada patriota. Não deveria permanecer silencioso velando pelo segredo do seu coração e não cair na pomposa adulação dos filisteus. Porque tanto ardor e tanto entusiasmo, amigos. E que não sabéis amar?

As palavras de Çiçek cairam como uma pedra. Até Ibrahim ficou surpreendido e sério. Não porque não compartisse as palavras de Çiçek mas porque intuia que podiam ter problemas ali mesmo.

Todo o café olhava já para Ciçek e Ibrahim. Foi, então que Çiçek começou a contar uma antiga história:


- Pode que já vos tenham contado esta história ou pode que não. Mas hoje terá um sabor novo para todos nós. Escutai, a história de Hatim al Tai, o homem mais generoso que jamais existiu.

Quando o famoso Rei Hatim Tai soube que um monarca vizinho preparava a invasão do seu território compreendeu que por muito que se esforça-se em deter o ataque, afinal seriam derrotados, tal era a superioridade do exercito atacante. Deliberou profundamente que estratégia seguir e finalmente tomou uma decisão. Chegou a um trato com o rei vizinho: deixaria o trono e assim se evitaria um derramamamento de sangue mas o novo rei se devia comprometer a manter a situação de direitos e propriedades das que gozavam os seus súbditos.

Hatim Tai fugiu para o monte e tomou o manto dos dervixes.

Muitos súbditos guardaram a boa memória do rei mas não todos. Alguns começaram a pôr em dúvida os seus actos, pensando que tinha escolhido uma forma fácil de fugir aos problemas sem assumir a verdadeira responsabilidade do seu cargo. Outros não falavam mal dele mas os seus corações arrefeceram como crianças que não compreendem a ausência do pai que deve trabalhar longe para sustentar a família.

A fidelidade e a lembrança que na maioria dos súbditos ainda permanecia firme fez ao rei usurpador proclamar um bando em que se ofereciam mil dinares de ouro ao que capturasse a Hatim Tai. No fundo, era uma permanente ameça ao seu poder e já estava arrependido de ter feito trato algum.

Um dia Hatim Tai caminhava pensativo pelo bosque quando ouviu uma conversa:

- Se tão só tivessemos a sorte de capturar a Hatim Tai, seriamos ricos e felizes para o resto das nossas vidas, especialmente a tua, pois eu já tenho pouco tempo por diante.- dizia um velho lenhador à sua jovem esposa.

- Deverias sentir vergonha, disse ela, de falar desse modo do nosso rei. Ele que se sacrificou a si mesmo pelo nosso bem-estar. Uns poucos mais que pensem como tu e a sua vida terá sido em vão

- Essas palavras são muito belas, mas quem sabe se o não fez pelo seu próprio interesse?. Es muito nova e muito ingénua.

Então Hatim Tai, apresentou-se diante do lenhador e disse-lhe:

- Aqui estou. Eu sou Hatim Tai. Leva-me diante do teu rei e obtém o ouro que tanto preças.

- Oh, Hatim. Tu es o meu rei. Como poderia eu fazer isso?. Perdoa as minhas palavras de fraqueza e estupidez.

Mas nesse momento apareceram um grupo de soldados e apressaram-nos, levando-os todos à corte. O lenhador ia cabisbaixo e sem dizer uma só palavra, como se esperasse uma sentença de morte.

Quando chegaram ao palácio os soldados pretendiam ser os captores de Hatim Tai e assim cobrar a recompensa. Produziu-se uma pequena confusão, quando Hatim Tai pediu falar:

- Majestade, penso que eu devia ser também ouvido. Foi este velho lenhador que me capturou e deve ser ele quem cobre a recompensa.

O lenhador ficou estupefacto. Começou a falar:

- Majestade, não foi assim que aconteceu. E contou como Hatim se tinha entregado depois de ter ouvido a conversa com a sua mulher.

O novo rei estava assombrado. Falou ainda gaguejante:

Oh!, Hatim, que posso fazer?. Se te mato viverei à sombra da minha mesquindade escurecido pelo lenda da tua generosidade, que se engrandecerá. Se te encadeio será um constante motivo de rebelião, que acabará finalmente comigo, pois ninguém pode dominar de jeito duradouro sem a legitimidade do seu povo. Por favor, recupera o teu trono e aceita-me como amigo, de jeito que a minha riqueza seja que acudas aos meus convites, pois ninguém pode competir com os teus.

Hatim sorriu e disse:

- Está bem, aceito o trono - e pondo a mão sobre o queixo, disse:

- E pensarei o dos teus convites!

Muitos sorriram no café. Mas alguns dos “activistas” disseram, entre dentes:

- Contos para crianças. Que terá isso a ver connosco!

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