segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Layla no Jardim Botânico.



Há doze anos que morei em Lisboa. Foi por estas datas, em Janeiro, que me instalei na cidade pois antes vivi uns meses na Costa da Caparica. Costumava ir à Universidade Clássica ou à Biblioteca Nacional onde lia e apanhava apontamentos sobre José Marinho, a quem dedicava os meus estudos. Mas nem sempre era fácil. Na minha cabeça havia muitas mais cousas que demandavam a minha atenção, entre elas uma Teoria Vegetal da Humanidade. Sei que o título é um pouco pomposo porque nunca passou de um esboço, esboço que conservo algures mas que nem poderia dizer exactamente onde. A ideia básica era que o ser humano podia ser compreendido melhor (no seu mundo interior) a partir do conhecimento das plantas que dos animais. Parecia-me que os processos evolutivos e de crescimento, as conexões subtis, a comunicação, a alquimia fotosintética, a percepção do ambiente ou até a sexualidade tinham nas plantas modelos mais interessantes que no mundo animal (que reconheço que pode ser também fascinante). Deste jeito percebia ao homem como uma planta que caminha, uma árvore que caminha mais exactamente. Não vou agora estender-me sobre o tema pois as suas ramificações são infinitas. Poderiamos começar pela própria palavra grega phisis e reinterpretar a filosofia aristotélica não desde uma base lógica mas botánica. Não foi o seu discípulo Teofastro o que se dedicou ao estudo das plantas de um jeito sistemático e científico?

Havia toda uma tropologia, toda uma retórica e imagética que ligava com o mundo vegetal de um jeito tão íntimo através dos poetas, da música, ou do pensamento que em certo sentido aquilo era, na altura, o meu monotema obsesivo. Podiamos distinguir, por exemplo, uma sexualidade vegetal e outra animal. Animais que simbolizariam um eros vegetativo como o cervo ou o cavalo enquanto outros envolveriam uma sexualidade mais carnal e menos (paradoxalmente) sensitiva. Isto levava-me ao problema do canibalismo envolvido em algumas leituras de Teixeira Rego, muito interessantes, mas que eu procurava entender numa ordem simbólica mais elevada e menos positivista. Assim haveria um "canibalismo" vegetal e espiritual bem diferente do outro animal e carnal. Como nos povos primitivos, onde existe uma participação da essência ancestral. Pensava em Húmus de Raul Brandão, nas imagens dos trovadores, na Eucaristia, nas plantas enteogénicas como o peiote ou o matema (ayahuasca), e muitas mais relações que agora não tenho à mão.

Este tema reiniciara-se após um certo tempo e voltou a mim através do que foi a minha descoberta, casual em aparência, do Jardim Botânico da Universidade, situado perto da Praça de Príncipe Real. Um dia que me sentia especialmente inquieto na Biblioteca decidi apanhar o metro até ao Rossio e começar a deambular pela Baixa. Sentia uma premura e uma inquietação inusual. Cheguei a Prícipe Real e fiquei um tempo por ali até que percebi que algo "tirava" de mim numa direcção determinada, que me levou ao Jardim Botânico. Ao chegarem ali a minha inquietação parou de súbito e o meu caminhar começou a se fazer lento e pesado, comecei a carregar-me como se fosse uma bateria esvaziada. Permaneci ali durante uma hora ou algo mais. Depois voltei para a Costa da Caparica onde vivia. Não podia deixar de ver certo tipo de relações humanas (as habituais) como formas de canibalismo puro e duro, sem compaixão alguma. Pode que aqui tivesse mais presente a Oração ao Pão de Guerra Junqueiro, e ligava-se bastante bem ao que era o meu estado interior de aquele momento.

Isto foi o inicio das minhas frequentes visitas ao Jardim Botânico.

Não posso aqui dar conta da quantidade de pensamentos, provavelmete de parvoíces também, que se passaram nesses tempos pela minha cabeça mas, quem sabe?, pensar significa também pensar muitas asneiras.
Tudo era para mim algo mais que literal, tudo era uma metáfora que enviava a outra cousa. Suponho que poderia ser as delícias de um Heidegger ou de um Derrida. A própria palavra, a semântica, era de facto uma semente e ja estavamos outra vez no tema!

Uma tarde estava eu sentado num banco, era finais de Abril ou princípios de Maio, no Jardim , quando uma rapariga veio a mim e perguntou-me:

- Where´s the exit, please?

A saída estava perto mas começamos uma conversa. De inicio tive uma sensação vagamente familiar e surpeendeu-me que fala-se em inglês pois parecia portuguesa. Pensei que quiçá me relacionasse com alguém de fora, o que seria estranho, pois posso passar por português sem dificuldade. Mas ela era da Suiça e sentiu-se muito louvada quando eu lhe disse que parecia portuguesa. Ela gostava de Lisboa, do ambiente, da evocação, de certa sensação antiga e, claro, de algo tão diferente à civilizada Suiça.

A certa altura, já saindo do Jardim Botânico, perguntei-lhe o seu nome:

-Layla, disse-me.

- Layla?, repeti, como não acreditando no que tinha ouvido.

- Sim , Layla. E foi quando me disse que os seus pais tinham sido hippies numa época, e puseram-lhe aquele nome exótico.

Caminhei com ela durante uns minutos mais e ,de súbito, descobri qualquer desculpa para me ir. Ela ia ao encontro de uma amiga, e pareceu-me razoável despedir-me perto da Brasileira. Os meus passos encaminhavam-se para a Mouraria. Os dela perderam-se rua abaixo, pois nunca mais a voltei a ver.
Caminhava para a minha casa e pensava onde estava o êxito, a saída, o exitus, o sucesso. Pensava em Layla, que é a noite, a negridão, a verdade, a morte. E pensava nessa sensação de próximidade familiar que me tinha transmitido Layla, como se me lembrasse minha avó , então já falecida, minha avó Lala. Este era o nome que eu lhe tinha posto ao ser incapaz ,quando criança, de dizer abuela.

E toda essa rede semântica caminhava pela minha cabeça formando um claro e profundo sentido que, porém, tinha surgido de um mero acaso no Jardim Botânico com uma rapariga que estava longe de conhecer o alcance das minhas meditações?

Ou... quiçá não?

PS- Em árabe As Mil e uma Noites é Alf Layla Wa Layla mas é também uma codificação segundo a aplicação do sistema Abjad que significa A Mãe das Lembranças, a Matriz da significação.

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