sábado, 24 de janeiro de 2009

O mestre da disseminação: Ibn Arabi

Mas isto que contas é um conto velho- dizem eles

Mas isto que contas é um conto novo provavelmente- dizem alguns

Conta-o de novo- dizem eles.

Oh!, não o contes outra vez- dizem outros

Mas eu já tinha ouvido tudo isto antes- dizem alguns

Oh!, mas não era assim como se contava- diz o resto

E esta, esta é a nossa gente, dervixe Baba, este é o homem.

(Recitação Naqshbandi)

Ibn al Arabi (1165, Murcia- 1240, Damasco) evitava falar sobre filosofia ou espiritualidade já estivesse com pessoas sem formação ou muito instruídas. Não se trata de algo excepcional no sufismo, mais bem é a regra. Contrariamente ao que se possa pensar noutros círculos ou em formas imitativas, os estereótipos sobre o que um homem espiritual é ou faz não se correspondem com a, pelo geral, banal realidade do cotidiano. Não há dúvida que em torno a Ibn Arabi há muito glamour, especialmente nos círculos intelectuais ocidentais mas não só. Ele foi considerado o mestre da intelectualidade pura, onde as suas capacidades racionais estavam unidas de jeito único a uma intuição mística incomparável. Escreveu, de facto, centos de livros e tratados sobre temas que unem filosofia, poesia e espiritualidade de jeito inextricável. Mas as ideias que nos podemos fazer sobre ele podem ficar distorsionadas se nos fixarmos nos aspeitos mais brilhantes da sua produção, sejam experiências espirituais ou a sua influência tão notável em toda a cultura oriental posterior (desde Marrocos até a Indonésia passando pela India). As hagiografias tendem a passar por alto a realidade "ordinária" na que se desenvolve a vida dos seres humanos, mesmo dos mais notáveis.
É neste sentido que são interessantes algumas considerações de Ibn Arabi sobre os mestres e homens espirituais que conheceu, sobre o seu próprio discipulado, sobre as actitudes das pessoas perante o ensino espiritual, enfim, sobre as facetas que comunmente não aparecem nas considerações mais técnicas e sapienciais do ensino, que já estão feitas para pessoas avançadas no seu desenvolvimento, cousa que é bastante esquecida nos círculos mais academicistas ou mais "cultistas". É com este proposito que escrevo isto. Unir uma contas de pequenas estórias, aforismos e ditos do que foi conhecido como o Mais Grande dos Mestres. Sobre o mestre diz: " A gente pensa que um mestre deve fazer milagres ou demostrar iluminação mas o único que precisa um mestre é ter aquilo que o discípulo necessita"
Numa ocasião encontrou com Abu Ishaq, que vivia perto de Algeciras, vendedor de cerâmica e homem de doce amabilidade e esforço interior intenso. Este disse-lhe: "Irmão, na minha opinião os homens são de dous tipos: os que falam bem de mim e os que o fazem mal. Os que falam bem de mim são os meus amigos, que me desejam o bem, dizem de mim o que me faz bem e merecem, realmente, o nome de amigo; os outros, os que o fazem de modo prejudicial, são os que falam da minha espiritualidade"
A própria educação na via, quando ainda era um rapazinho de quinze anos dependeu nos seus inícios de duas mulheres excepcionais: Shams de Marchena e Fátima de Sevilha.
De Shams de Marchena diz: " Vivia em Marchena dos Olivares, onde ia com frequência visitá-la. Entre os homens e mulheres espirituais, nunca conheci ninguém que tivesse semelhante domínio da sua alma. As suas práticas e as suas revelações eram notáveis. Tinha um coração forte e puro, uma energia espiritual nobre e uma grande discriminação. Ocultava o seu estado espiritual, mas aconteceu que me confiu um segredo, pois ás vezes tinha revelações ao meu respeito e senti muita alegria. Tinha uma barakah imensa e manifesta. Conheci-a quando tinha oitenta anos. Um dia que al-Mawruri e eu esávamos com ela, de repente, voltou a cabeça e gritou o mais forte que pôde: "Alî, volta e apanha o lenço!". Quando lhe perguntamos a quem se dirigia, explicou-nos que Alî vinha a visitá-la e que se tinha detido à beira do rio. Quando se ergueu para reemprender o caminho, esquecera o lenço. Por isso ela o tinha chamado; ele voltou e recolheu-no. Uma hora mais tarde apresentou-se e contou-nos como se tinha detido à beira da água para comer e depois tinha esquecido o lenço. Foi quando, um tempo mais tarde, ouviu a Shams para adverti-lo. Também tinha o poder para exprimir os pensamentos dos demais. As suas revelações eram certas e eu vi como realizava muitas maravilhas"
Quanto a Fátima de Sevilha Ibn Arabi mostra uma grande intimidade:
"Vivia em Sevilha. Quando a conheci tinha noventa anos e alimentava-se dos restos de alimentos que a gente deixava à porta das suas casas. Ainda que era tão velha e comia tão pouco, sentia vergonha de olhar a sua face, pois era rosada e fresca. A sua surata pessoal era a Fâtiha (A abertura do Alcorão). Numa ocasião disse-me: " A Fatiha foi-me concedida. Está ao meu dispor para tudo o que queira fazer".
Dous dos meus companheiros e eu construimos-lhe uma cabana de canas para que vivera nela. Tinha o costume de dizer: "Os outros vêm visitar-me com uma parte deles mesmos, deixando nas suas casas a outra parte, enquanto que meu filho Ibn Arabi é a frescura dos meus olhos, pois quando vem ver-me vem tudo inteiro; quando se ergue, ergue-se com toda a sua pessoa. Não deixa nada de si mesmo noutra parte. Desta forma é como convém estar no Caminho"
Ainda que Alá lhe tivesse apresentado o Seu Reino não se teria mudado nada; somente dizia: "Tu es Tudo, fora de Ti tudo é funesto para mim". Estava confusa perante Alá. Ao vê-la, poderia dizer-se que era retardada, ao que ela teria respondido: "O retardado é o que não conhece ao seu Senhor". Era uma misericórdia para os mundos.

Mentres estava com ela numa ocasião, veio buscá-la uma mulher para queixar-se que o seu esposo se achava em Sidónia, a dous dias de viagem de Sevilha. Informou-nos de que queria encontrar outra mulher naquela cidade, cousa que considerava excesivamente duro de suportar. Perguntei-lhe a Fátima se tinha escutado a queixa da mulher e supliquei que pedisse a Alá que lhe devolvesse o marido. Ela respondeu: "Não farei súplicas, mas vou actuar de forma que a Fâtiha siga a esse homem e o traga a casa" Então disse: "No nome de Alá, o Todo Misericordioso, o Muito Compassivo" e recitou o resto da surata. Depois acrescentou: " Oh, surata al Fâtiha, vai reunir-te com o homem desta mulher a Sidónia de Xerez e onde quer que esteja, fá-lo voltar imediatamente e não deixes que se demore" Pronunciou estas palavras na sobremesa.

Dous dias mais tarde, o marido chegava à sua casa. A mulher veio então informar do seu regresso e exprimir o seu agradecimento. Pedimos-lhe que trouxe-se o seu marido e, quando se apresentou, perguntamos-lhe que o tinha feito voltar de Xerez quando pensava casar e estabelecer-se lá. Respondeu que tinha saído à meia tarde e que se tinha dirigido ao edifício municipal onde concluiam os matrimónios. De repente tinha sentido que o seu coração se oprimia enquanto tudo se voltava sombrio ao seu rededor. Muito inquieto, abandonou o lugar imediatamente e chegou ao porto, onde encontrou um barco para Sevilha. Embarcou no dia seguinte e chegou de manhã, deixando todos os seus assuntos e a sua bagagem em Xerez. Admitiu que desconhecia a razão do seu comportamento. Vi-a realizar numerosos milagres"

Ibn Arabi dá conta de fenômenos espirituais, de telepatia ou de experiências paranormais com bastante naturalidade. Para um leitor actual pode resultar difícil de crer muitas das cousas que conta mas Ibn Arabi mostra como o mesmo problema se dava na época na que ele vivia, e teve amargas polémicas com teólogos racionalistas que reduziam a Misericórdia divina a uma árida especulação de princípios e moralismos, diminuindo a grandeza da relação humana perante o mistério do ser.

Numa ocasião encontrava-se em Tânger onde compus um poema que não chegou a escrever, sob um estado de inspiração e degostação espiritual. Vários meses mais tarde encontrava-se em Sevilha com um grupo de amigos. Então alguém recitou o seu poema. Intrigado Ibn Arabi perguntou de quem era esse poema e responderam-lhe que era dele. Perguntou como sabiam isso pois não lho tinha revelado a ninguém. Disseram-llhe que uns meses atrás um homem que passava recitou o poema entre um grupo de gente. Perguntaram-lhe de quem era o poema, pois gostaram muito dele, e o homem disse-lhes:

- O poema acaba de ser composto por Mohiudin Ibn al Arabi.

Aprenderam-no de cor até que finalmente o homem se perdeu entre a multidão.

Ibn al Arabi fala também da especial dureza com que era tratado perante os outros companheiros por um dos seus mestres, até o ponto de que os seus amigos chegaram a pensavar que não tinha futuro nenhum no caminho. Conduta que não é inusual nos mestres para com aqueles que possuim verdadeiros dons para o caminho e que está dirigido à verdadeira proteção do discípulo. A negativa a reconhecer publicamente os logros do discípulo contrasta com a sua experiência interna, que não encontra eco para a vaidade ou a autocomplacência. É algo essencial mas que só se aplica aos verdadeiros discípulos, pois carece de sentido actuar assim com pessoas que só o podem interpretar como uma questão pessoal. Não acontece assim com o discípulo porque este tem experiências genuínas que lhe fazem sentir a validez e honradez do seu mestre.

2 comentários:

Pedro Casteleiro disse...

Dou-te as graças por contares estes contos que pensava que sabia. Olha, é curioso, muito curioso, que coloques esta pintura rupestre de cólofon. Há uns dias constatei, por uma pesquisa que apresentou a Sociedade Geográfica Britânica, que tudo aponta a que as pinturas pré-históricas de alguns pontos do sul da França (e outros lugares) estão desenhadas com os mesmos parâmetros do que aquelas mais modernas de alguns povos africanos de língua Khoysan (mal chamados hotentotes -gagos- polos holandeses), talvez berço de todas as línguas do planeta.

Pronto, o assunto é que estes parâmetros de desenho são derivados de uma experiência visionária, induzida polos xamãs, com finalidade terapêutica. Igualmente, essa finalidade, no sentido holístico próprio das culturas tradicionais, teriam os desenhos e pinturas das paredes.

Abraço.

José António Lozano disse...

Estou estes dias com esses problemas nas minhas aulas. Todos os sistemas de escritura ideográficos revelan um uso do hemisfério direito do cérebro, pelo menos na sua origem. Todas as nossa cultura é uma obsessiva evitaçao (estou com Linux e nao sei como pôr o til de nasalidade) da comunicaçao.
Sempre pensei que as pinturas rupestres eram o que aqui estas a dizer. Há uma comunicaçao do ser que se realiza como uma forma de subsistência e alimentaçao. O que comunmente chamamos de telepatia nao é mais do que um caso particular de um processo muito mais amplo.
Voltarei com Ibn Arabi, a comunicaçao e a educaçao pois sao temas que me ocupan ultimamente.
ando com um livro que se intitula: "Del ver al pensar", de F.C.E, de um chileno de apelido Elliot.
Estes dias andei tentando a mudança a Linux e foi um amigo que mo fez mas ainda nao funciona bem o reconhecimento Wi-FI. Terei que pôr Wi-Fi em Pontedeume e assim levar mais ao dia o blogue. Enfim, que estes dias nao tive o portatil nem a internet e disso ressentiu-se o blogue.

Por certo que estou também lendo a Mc Luhan. Ele dizia que nao o compreendiam nos ambientes académicos porque era um cérebro direito a falar para cérebros esquerdos.
Um forte abraço.