quinta-feira, 5 de março de 2009

Pensamentos caminhados



Quando o eu chora porque perdeu, a essência ri porque encontrou”
Dito Sarmouni


Ler Espinosa ou Nietzsche tem as suas vantagens mas existem diferentes maneiras de o fazer, naturalmente. Lembro que um dos autores que mais me influenciou foi precisamente Nietzsche, e foi o que me levou a procurar fora dos limites da experiência ocidental. O que comprovei com a passagem do tempo é que algumas pessoas que me tinham acompanhado na reflexão do pensamento, digamos, de onda nietzscheana não compreendiam os meus ulteriores passos. Não compreendiam porque eu me interessava no sufismo, por exemplo. Ou não compreendiam o meu interesse pelo que foi o meu contacto inicial com a obra de Carlos Castaneda. Quer dizer, estavam dispostos a compreender até um ponto: como uma curiosidade pessoal, como parte do que se podia falar com umas cervejas ou para deixar voar a fantasia, quase como uma peculiaridade tolerável em mim que já se passaria. Só que no meu caso era algo essencial. Uma cousa levava a outra, e não era nem foi algo ocasional. Tem a sua lógica interna e há um momento em que as pessoas estamos sós perante as nossas decisões e perante o nosso pensamento. Não há ninguém que nos acompanhe na compreensão do que realmente compreendemos. Por outro lado, deve ser assim. A maioria das pessoas olham para o lado para ver se têm alguém que os acompanhe ou alguém que lhes faça um aceno de compreensão, ou mesmo alguém a quem seguir. Mas um deve seguir o seu próprio caminho. A notícia pela que todos esperamos, o que devemos encontrar, não sairá publicado nos jornais de hoje nem de amanhã. Ninguém virá à nossa casa trazer-nos a esperança cumprida. Por isso lembro a frase do meu avô no seu quarto com noventa e oito anos dizendo:


Toda a vida esperando, esperando quê?


A vida dos seres humanos assemelha-se muitas vezes a uma espera, a um adiamento irracional de que algo definitivo acontecerá em qualquer momento, desde o apocalíptico até Deus sabe que. Mas o tempo passa, simplesmente. E então já somos velhos. Compreendemos algumas cousas que seriam úteis se tivéssemos quarenta ou cinquenta anos menos, e então há que despedir-se, ou despir-se, não sei, do cenário. Cìao.


Uma das questões que está por debaixo disto é o tema das crenças. Para algumas pessoas tudo se reduz a uma questão de crenças. Particularmente certo pensamento filosófico moderno vê a velha filosofia e a sabedoria tradicional como uma língua morta, algo que só se encontra em livros não em pessoas. E se alguém ousa reivindicá-la será situado ao mesmo nível que as religiões ou as opiniões heterodoxas. É uma forma de sofística encoberta, que trabalha com boa consciência. Provavelmente o que esteja em questão seja a próprio sentido da identidade pessoal, do familiar, de preconceitos encobertos que são a sólida base do nosso sentido da existência. As pessoas queremos modificar a realidade com arranjo aos nossos preconceitos, e estamos dispostos a aprender mais com o fim de defendê-los melhor. Mas aprender significa morrer também a tudo o que é comum e familiar. A partir de uma certa altura o novo já não entra. Simplesmente é adaptado e interpretado com arranjo aos nossos interesses. Mesmo que estejamos francamente necessitados, buscamos “causas” que nos justifiquem na nossa clara inadequação.


Se olharmos o sistema cultural no que nos encontramos devemos compreender que ainda estamos sob os efeitos ( e a vivência) dum fundamentalismo político e económico, que causou estragos durante todo o século XX. Ver como as pessoas substituem um fundamentalismo por outro pensando que superam as situações é triste. Basicamente existe uma obcecação ideológica. Tudo é visto desde algum tipo de focagem”ideológica”. A política não é mais do que isso. Muitas pessoas podem lembrar seguramente o significado obsessivo e fanático que o “político” teve durante o passado século. Alguns ainda põem as suas esperanças em algo tão abstrato e carente de conteúdo como os apelos ao “compromisso” político de algum tipo. É uma estafa, nem mais nem menos. Somos estafados porque nos entregamos a uma indulgência que consiste em somar fraquezas. Somamos medos e esperanças. Porque substituímos a nossa intuição pelos nossos medos. E esperamos, contra toda esperança que, por fim, o carrasco nos compreenda. E não há dúvida que até se pode voltar humanitário e matar-nos sem sofrimento. Que lhe custa?


Muhammad Yunus, tal e como vemos no post anterior, exprimia a sua tentativa de convencer ao diretor do banco do su projeto e como gastava energias nisso. Porque se tinha voltado tão importante para ele essa pessoa? Porque queremos convencer a outros do que só podemos fazer nós?. Navegar é preciso e, na verdade, não vale a pena convencer ninguém de nada, porque: que importam os crentes?. As pessoas confundimo-nos sobre isto. Mas o sistema baseia-se nesse tipo de condicionamentos. E as pessoas adulamo-nos pensando que alguém ou algo está “interessado” em nós. Certamente há muitas cousas e pessoas interessantes e interessadas cujo oferecimento consiste numa sedução medida, mas o que está sendo oferecido é algum tipo de promessa velada ou manifesta. Mas a única promessa que vale a pena é a que nos fazemos perante nós mesmos, assumindo a nossa responsabilidade e, sobretudo, assumindo que o valor das cousas depende do que nós ponhamos nelas.


Uma política, um sistema, uma organização, um movimento, podem ser armadilhas que envolvem as pessoas num alheamento de si. Funcionam como supostas garantias de que estamos a fazer qualquer cousa que merece a pena, que o nosso tempo está a ser investido como parte de um negócio rendível. Entretanto surge o auto-engano na procura de signos e indícios que nos prognosticam que o nosso caminho é o correto. Mas realmente não há tais signos. Simplesmente os convocamos, da mesma maneira que nos obcecamos com um número e acabávamos por vê-lo até na sopa. De aí concluímos que sairá na totoloto. Muito do idealismo político e religioso não é mais do que isso.


Realmente não há garantias. Somos as pessoas, individualmente, as que nos temos que fazer cargo da tradição humana. Mas é fácil adular-se pretendendo pertencer a algum tipo de nobre escola de pensamento, ideologia, religião, tradição ou o que for. Encobrimos com o seu prestígio as nossas próprias falências. Recordando um velho dito taoista:


O homem incorreto com o instrumento correto resultado incorreto mas o homem correto com o instrumento incorreto resultado correto”


Quando compreenderemos isto?


É mais fácil deixar-se levar pelas próprias fixações do que engolir certas verdades que nos “deprimem” ou que nos causam inquietação porque existe a falsa convicção do “pensamento positivo” (de origem fundamentalmente norteamericana) que confunde a estimulação do egocentrismo e as emoções fortes e histéricas com a verdadeira positividade que, realmente, pode ser uma ruína para esse negócio.


Enfim, que por hoje me despeço com um antigo poema que fala de morte e despedida, e que foi em mais de um aspeto premonitório. Deveríamos aprender a nos despedir, a nos despir dos atos e da nossa vida e, recordando ao velho Don Juan de Castaneda, ter a nossa morte como conselheira.



ADEUS, AMIGOS.


adeus amigos e adeus poemas
a tarde cai tão leve e tão sincera
que tiro o lenço duma lágrima serena
e finjo um sudário de flores e de areias


para outros mares navega o ataúde
barco puro de sonhos e de versos
e eu sinto o velho cadaleito
florir nas sobrancelhas e nas veias


adeus poemas e adeus amigos
pouco dizem as pinturas e as palavras
se o silêncio das tardes mais antigas
não soubermos ouvir sem partituras


deixemos que o vento traga novas
e rosas de inverno sem melancolia
deixemos amigos e poemas fóra

fora da ilusão e da sagaz mentira
diga-se um adeus sincero e vivo
de amor e morte por igual nascido

adeus poemas, adeus amigos.


2 Agosto, 2005


1 comentário:

brancalúa disse...

¡Bellísimo poema!

Bicos