terça-feira, 10 de março de 2009

Comunicação cultural: os muçulmanos


Há vários anos sustinha uma conversa com um conhecido sociólogo, um homem que foi muito importate para mim. Aprendi muitas cousas dele apesar de tê-lo encontrado pessoalmente só em duas ou três ocasiões. Uma pessoa inteligente, aguda e perspicaz. Com um toque irónico de formação anglosaxónica. Numa certa altura falávamos sobre os sufis. Disse ele, mais ou menos:

- Os sufis são um caso surpreendente de uso renovado de uma tradição, revelam uma coragem e um grau de afirmação que contrasta com o entorno fortemente fanático (referia-se ao mundo muçulmano). São, para muitos, os autênticos cristãos.

Fiquei perplexo, e vencendo o sentimento de respeito que tinha por esta pessoa, consegui balbucir:


- Ainda bem que é possível encontrar cristãos entre os muçulmanos porque entre os cristãos, concordemos, já não é possível!


Isto não é estranho mesmo entre pessoas de alta preparação intelectual. Existem uns preconceitos sobre o mundo muçulmano em geral que actualmente se está a incrementar. E não me estou a referir às situações actuais só mas o que o mundo muçulmano e árabe significaram para civilização humana.


Desde o meu ponto de vista há áreas que tradicionalmente não foram tratadas em Ocidente. A maneira em que se faz possível a existência da tradição sapiencial em certas sociedades também deveria ser algo a considerar como um valor: em certas sociedades é possível a existência do "sábio". Em outras existe o intelectual ou o cientista mas o "sábio" é levado ao museus. A própria tradição ocidental e democrática tem um "início" na execução de Sócrates. Pode que Sócrates não fosse progressista e alguns autores contemporâneos quase justificam a sua execução. E têm a Hegel como antecedente, quem tenta dar uma dimensão trágica a algo que não tem mais que uma visão: os ignorantes sempre consideram que o seu poder é poder matar. Um vitalismo mortífero. Uma triste ilusão, por outro lado.


A maneira em que se interpreta o estoicismo no mundo muçulmano tem mais a ver com a continuidade da tradição sapiencial que com o aspecto doutrinario que acaba por tomar em Ocidente. Na tradiçao islámica é visto como uma estratégia em acção, da mesma maneira que os cínicos. Não são uma doutrina a imitar mas um caminho numa fase de desenvolvimento. Há apectos equiparáveis nas formas do caminho qalandar e no malamati, que não são compreendidos como fins em si mesmos.


Os livros sobre a cavalaria espiritual são originariamente muçulmanos. Notável é Al Sulami, do século IX. Livros que continuam a ser utilizados. Asín Palacios demonstrou a dívida de Dante com Ibn al Arabi: há fragmentos que são descripções literais que antes aparecem no místico murciano.


Acaba de sair uma publicação sobre a possível autoria árabe do cantar do Mio Cid (a base mítica do nacionalismo espanhol)


http://olevantadordeminas.blogaliza.org/2009/03/07/el-cantar-de-mio-cid-genesis-y-autoria-arabe-de-dolores-oliver-por-catherine-francois-e-santiago-auseron/#comment-23264


Goethe iniciu uma obra teatral intitulada "Muhammad". Escreve no seu diário: "Correm rumores de que o poeta Goethe é muçulmano. O poeta nem afirma nem desminte"


Eu estava presente o ano passado na actuação dos dervixes dançantes no Teatro Colón da Corunha. Ao sairem ouvi um comentário dito em voz alta por alguém que se sentia perturbado e afrentado. Dizia este homem civilizado, num tom pomposo e arrogante:


- Sin duda prefiero el Gregoriano. ¡Y pretenden entrar en Europa!


Mas quem são realmente os europeus?



1 comentário:

José António Lozano disse...

Muitas destas questões reduzem-se a um problema de propriedade. Sentimos que certas cousas, ideias, o que for, são "nossas". Actuamos com orgulho de propriedade, por isso a minha crítica dos nacionalismos vai também contra estes chauvinismos intelectuais. O património cultural e humano é para ser usado adequadamente desde uma ética essencial. Não temos nenhum direito de apropiação sobre ele. Isso invalida-nos. O Gregoriano não é para competir com ninguém, como tampouco a dança dos dervixes dançantes existe para promover a cultura turca.
Como dizia uma vez alguém:
"O bom que vês em mim não está aí para te causar impressão, está aí pelas suas próprias razões"