quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Divagação em voz alta.


"O ouro falso existe porque existe ouro verdadeiro mas não é culpa do ouro verdadeiro que exista ouro falso.
Como disse um homem ao apresentar a outro:
- Aqui está fulano, é sábio, mas ele não tem a culpa"
Do Livro "Ditos vadios de Pir-i-Lampo"


Ler as obras clássicas é sempre muito mais interessante que ler aos que se dedicam a contar-nos o que outros dizem. Surgem surpresas sempre agradáveis. Ler Kant, Platão, Spinoza, Nietzsche directamente permite-nos tirar conclusões que tão só longinquamente podemos chegar a intuir num comentarista. O que me chama a atenção é o processo de degradação de ideias cercanas, repetidas e perfeitamente datáveis. Quando, por exemplo, enfrentamos a figura de Sócrates vemos que os seus próprios contemporâneos o confundem com um sofista e muitos dos que falavam com ele quase diariamente e o tinham por amigo desconhecem realmente a sua personalidade e como vai reagir perante a acusação e posterior juízo. Uma pessoa accessível a todo o mundo, que falava diariamente com aquele que se lhe acercasse era, ao mesmo tempo, alguém sobre o que circulavam todo tipo de rumores e ideias estranhas, como nos mostra Platão em alguns dos seus diálogos. Era um desconhecido. Não é um problema que exista só no presente, e que poderiamos desculpar pelo tempo transcorrido, é algo que lhe acontecia aos seus contemporâneos.

O próprio Platão faz umas muito interessantes declarações na Carta VII sobre o sentido da filosofia, chegando a dizer que não vale a pena manter dialéctica sobre o sentido mais alto do conhecimento porque não é de carácter discursivo mas experiencial. Esta mesma ideia pode ser rastejada em muitos dos seus diálogos junto à sua crítica ao literalismo e às limitações da transmissão escrita. Foi sistematicamente esquecido, infrainterpretado, ou sobreinterpretado. Lembro como um conhecido catedrático tentava sair desse problema declarando-o insolúvel e a continuação actuar como se essas palavras nunca tivessem sido ditas ou escritas. Ele pretendia dizer que isso era tentar resolver um problema que se dava no passado e sobre o que nada podíamos fazer. Ele não percebia algo muito simples: ele não acreditava que houvesse aí nada especial. Ainda assim fazia gala de probidade científica. Não percebia que esse era um problema no presente do que ele decidira desentender-se. Ele tinha interesses como académico que lhe resultavam mais importantes que a busca da verdade.

O próprio Aristóteles refuta uma Teoria das Ideias que Platão tinha já criticado e abandonado e ele tinha que saber isso. Se observarmos a maior parte das críticas que uns filósofos fazem a outros vemos que simplesmente não se compreendem bem. Caricaturizam ou esquematizam o que lhes interessa criticar e tudo resulta fácil. Não sempre há má fé mas tampouco sempre é a boa fé a que avonda. Há rivalidades, obcecações e personalismos. Tudo isto pretende esquecer-se, pretende fazer-se como que não existe, quando é a base de muitas dialécticas e explicaria muitas das teorias e filosofias que configuram a nossa sociedade. Também é a base de que muitos queiram pronunciar a última palavra. Não é tanto a busca da verdade quanto a necessidade de encher uma compulsão agonal cujos alicerces são a violência e o poder.

Górgias e os seus imitadores menos talentosos são o modelo da filosofia que se impõe como praxe. Górgias representa um atractivo e fascinação que nunca poderá oferecer um Sócrates, um Antístenes, um Platão, um Zenão (o estoico), um Epícteto. A gente não busca a verdade: o que quer é ser impressionada da mesma maneira que um primitivo venerará ao que acenda lume diante dele. Quanta mais parafernália mais possibilidades de sucesso.

Paradoxalmente o homem realmente sábio resulta mais insípido que os picantes e espécias que necessita o charlatão para disfarçar o fraco sustento que realmente tem para oferecer. Os doces sempre serão a fonte de capricho de uma criança enquanto que a comida verdadeira é a que lhe oferece a mãe e que não sempre receberá com agrado. Mas que prove a alimentar-se a doces um dia e veremos o resultado.

Tudo isto deveria dar que pensar porque sucede diariamente. As pessoas não escutam nem querem saber que pensa o outro realmente. Só querem assegurar-se uma atenção e uma descarga emocional, disfarçada de todo tipo de honoráveis intenções.

Diante de Górgias o que sabe parece um idiota. E um idiota acaba por incomodar até ao mais hierático porque é uma fonte contínua de frustrações: mete o pé na argola e não responde nunca ao que se lhe pergunta. Realmente este homem não sabe!. E como nós sabemos, o contrário é o "zoon politikon". Um animal e um político: um sofista. E porque não dizê-lo: um homem sofisticado, que como Aristóteles sabia é dado à melancolia. "Todos os grandes homens foram melancólicos", diz Aristóteles. Se bem é certo que não todos os melancólicos são grandes homens convém pensar nisso. Ser "grande homem" é um fardo pesado. É por isso que o Mullah Nasrudin não se permite essas lindezas. Foi Walter Benjamin quem nos lembrou a mania melancólica do tirano no Drama Barroco Alemão.
Gostaria de pensar num título interesante em si próprio:

"As melancolias de um Górgias. Apócrifo"


Enfim, deixai-me rir um pouco, ainda que não às escâncaras.

1 comentário:

Esdedesear disse...

Me gusta que hayas publicado estas reflexiones. Mi sintonía con ellas es total.Admiro tu claridad. Buena ocasión para re-cordar. Me vienen a la memoria las palabras de Gurdjieff: "El saber de la vida y el saber del ser han de guardar entre sí una relación" y las de Foucault: "Uno tiene que confrontar en cada momento lo que piensa y dice con lo que hace y es". Estoy dándole una vueltiña a la Etica de Spinoza, nunca defrauda, no pasa el tiempo por él, como por Platón, en fin...Muchas gracias.