domingo, 22 de fevereiro de 2009

A lição de Ahmed

Para o meu avô Lalo

O meu outro avô chamava-se Rafael. Devo-lhe a ele o meu interesse pela Galiza, pelas nossas tradições, pela nossa cultura. Cousas de Castelao, O Catecismo do labrego, Sempre em Galiza, chegaram a mim através dele. Muitas das estórias que depois conheceria como as do Mullah Nasrudim eram estórias que tinham como centro a um galego (Nasrudim) e onde lembro que se intercalavam figuras reais como a de Montero Ríos. Recordo como durante anos colecionou a Enciclopedia Gallega. Era um homem de sensibilidade artística, nascido numa aldeia do concelho de Meis a poucos Km de Cambados. Restaurou muitas telas e imagens de Igrejas da zona. Sempre me lembro quando chegavamos ao Convento de Armenteira e a minha mãe assinalava uma virgem que tinha sido restaurada por ele. Eu sempre esperava o momento em que a minha mãe dizia:

- Vês essa virgem? Restaurou-na Lalo (já contei que à minha avó lhe pus o nome de Lala, por incapacidade de dizer abuela quando criança, então o meu avô passou a ser Lalo)

Ele era um pintor minucioso e detalhista de inclinações realistas (não gostava da arte moderna) que tinha uma capacidade artesanal magnífica. Sempre gostava de pôr a palavra "jeito" e "jeitoso" como exemplos de palavras intraduzíveis para o castelhano. Ele tinha jeito para tudo o que fossem as mãos: modelar, pintar, restaurar, inventar máquinas...

Tinha ido com dez anos interno para Carrión de los Condes estudar com os jesuítas. Com eles foi para Bélgica, anos mais tarde, quando a expulsão da época da República. Aí deram-se muitas experiências que lhe abriram à realidade do que significava ser galego em Castela e os preconceitos que aninhavam contra uma cultura camponesa que falava uma outra língua. Realmente ele tinha uma imagem dos castelhanos forjada nessa etapa passada em Carrión, que foi rica em muitos aspeitos mas também extraordinariamente dura em outros. Via-os como pessoas arrogantes e sem subtileza mas também admirava-os secretamente. Às vezes parecia odiá-los mas eu ainda lembro uma viagem que fizemos os dous de carro a Madrid e a sua satisfacção ao falarem com os castelhanos das vilas em que parávamos. Recordo sobretudo a volta: o seu rosto estava radiante. Ele dizia:

- Os castelhanos autênticos são mui boa gente. Melhor que nós.

E eu ficava extraordinariamente contente de ouvir essas palavras saídas da sua boca. A mim também me pareciam certas. Lembro essa última viagem que fiz com ele e foi como uma reconciliação. Tinha encontrado uma escusa (supostamente por negócios) para ir a Madrid mas a viagem não era realmente necessária e ele poderia ter solucionado tudo aquilo sem sair de Corunha.

Mas tudo isto que antecede é para contar uma história da que o meu avô foi protagonista. Contou-ma passados mais de quarenta anos desde que aconteceu mas penso que ainda pode ser valiosa.

O meu avô participou em toda a Guerra Civil, no bando de Franco, com grande valor e coragem. A minha pórpria avó chamava-lhe "a cabra de Hiroshima" pela sua sorte ao sairem ileso de acidentes e na mesma guerra. Participou nos combates mais duros e nas situações mais difícieis, mas tão só recebeu uma bala numa perna, que nunca lhe chegaram a retirar. Ele mostrava-me o joelho, e dizia que se lhe aplicassem um detector de metais, aquilo tinha que apitar ao chegarem ali.

Entre os soldados havia um grupo de marroquinos (mouros) que também participavam na guerra (e de maneira brutal segundo se conta). O meu avô tinha feito amizade com um deles, Ahmed. Tinham certas afinidades artísticas e ambos rezavam o rosário, o que os fez falar também sobre religião. O rosário mussulmano chama-se tasbih e utiliza-se como uma forma de contar os nomes ou atributos de Deus, num exercício interno que se chama Dhikr. Eram os únicos que se retiravam a rezar e, para além disso, Ahmed mostrou uma especial consideração pelo meu avô.

Um dia o meu avô soube que Ahmed ia visitar a sua aldeia em Marrocos. Falando com ele pediu-lhe que se, por acaso, tinha ocasião de passar por Ceuta ou Melilha lhe trouxesse umas placas fotográficas. Praticava a fotografia e essa era uma ocasião de conseguir as placas de revelado mas advertiu-lhe que só o fizesse se coincidia que tinha que passar por Ceuta ou Melilha ou não o fazia desviar-se da sua missão.

Ahmed foi, voltou e trouxe as placas.

Passaram os dias e o meu avô notava um ambiente raro entre os marroquinos e Ahmed. Pareciam zombar dele. Ahmed estava sério com os seus próprios compatriotas e as relações pareciam difíceis.

O meu avô indagou e descobriu que Ahmed tinha andado oitenta km fora da sua aldeia para lhe conseguir as placas, o que era aproveitado pelos seus companheiros para incomodá-lo e ridiculizá-lo. O meu avô ficou atónito e foi falar com Ahmed. Disse-lhe:

- Ahmed, como fizeste esse esforço?. Eu tinha-te dito, que no caso que te coincidisse, trouxesses as placas. Porque o fizeste?

Ahmed respondeu-lhe:

- Tu também? Pensei que fosses um irmão na fé. Por favor, não perguntes nem te comportes como esses parvos. Isto é um assunto entre Deus e mim. Por favor, deixa o tema.

O meu avô contava-me isto quase com lágrimas nos olhos. Era uma lição que atravessava dezenas de anos, várias gerações. O contexto era a terrível Guerra Civil e um mouro era o mestre.

Lalo acabava por dizer:

- Os autênticos musulmanos têm uma fé que para nós os cristãos é inconcebível. Acreditam num único Deus e respeitam a Jesus muito mais do que nós. Nunca esquecerei essa lição.

E a lição chega agora, amigos, a vós.



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