quarta-feira, 1 de julho de 2009

Uma noite em Nishapur I

Ruinas do Alamut

(As referências a lugares e pessoas estão deliberadamente modificadas )


As montanhas de Binalud eram imponentes no entardecer. Umas nuvens carregadas de presságios fizeram apurar o nosso passo. O meu guia, Akbar, mostrou-me a casa do outro lado da rua. Era uma casa de aparência nobre e sóbria. As flores da varanda eram uma combinação de vermelho e branco que contrastava com os azulejos azuis da fachada. Senti como se fosse trasladado a alguma quinta de Sintra. De súbito veio a mim uma imagem de Lisboa, das ruas que se perdem mais abaixo da Rua do Jasmim.

- Vamos, entra - disse-me Akbar - a reunião está para começar.

Entramos na casa persa, pertencente a um velho artesão bem conhecido em todo o Khoração. Dedicava-se também à pintura e ali tinha lugar uma reunião sob o pretexto de falarmos de arte, de ouvir música tradicional. A realidade era essa e também outra.

Os recentes acontecimentos no Irão mantinham uma tensão no ambiente. As olhadas das pessoas na rua eram fugidias e inquietas. Não há dúvida de que o poder governamental possui uma grande força entre a povoação. O Khoração, devido à sua realidade rural, mantém certa alinhação com o poder mas era diferente na cidade de Nishapur. Por outro lado é difícil saber realmente que se passa. Irão é um país de uma tradição milenária de ocultação das verdadeiras crenças e tudo acontece mantendo uma dupla versão entre o exterior e o interior. Uma mesma pessoa pode não ter nada a ver no seu comportamento e crenças no que manifesta fora ou de portas para dentro. Tudo resulta, numa certa altura, um tanto paranoico. Especialmente para um ocidental, que gosta de que tudo seja branco ou negro ou sim ou não e, sobretudo, que seja já. Nada disso me esperava na minha viagem e todos os projectos, planos e intenções tiveram que ser refeitos sobre a marcha.

Akbar apresentou-me aos convidados. Haveria umas quinze pessoas. Um número extraordinário se tivermos em conta a situação política pela que está a passar o país. Eu pensava que em qualquer momento poderia entrar a polícia. Quem sabe se alguma das pessoas ali presentes não fosse um confidente?. Fui cumprimentado cortesmente pelo convidados. Era um grupo de idades heterogéneas que se sentavam numa espaciosa sala que se abria para um jardim interior. Algumas vides e enredadeiras faziam um estranho efecto no ambiente. Não havia bebidas alcólicas e as mulheres que ali vi (apenas quatro) não iam cobertas por nenhum veu ou lenço. Se não for pelo ambiente e decoração da casa as pessoas tinham um ar muito ocidental. Pelo que soube mais adiante algumas delas viveram já na França, Alemanha ou Inglaterra. Bebia-se chá e ainda que a minha presença era sem dúvida estranha não me senti nem especialmente requerido, o que teria sido muito fatigoso nem tampouco obviado, o que poderia ser simplesmente uma forma da cortesia e prudência persa. De algum modo tudo corria com naturalidade e era Akbar o que se encarregava de ser o meu anfitrião. Numa certa altura a reunião ia começar e notei como um homem de escassos quarenta anos assumia um papel diferente. Por un instante tive a sensação de estar numa operação clandestina de espionagem militar onde o homem não podia disfarçar, a pesar da sua aparência, serem o responsável, o comandante-chefe de alguma guerrilha sofisticada e anónima. Mas a sensação passou rápido e todos estavávamos sentados em círculo em cadeiras ou sobre almofadas mais ao estilo oriental. Akbar falou:

- O nosso amigo espanhol está aqui com o propósito de conhecer mais profundamente as nossas tradições filosóficas e culturais. Não o faz por simples curiosidade. Ele está convencido de que muitas cousas valiosas da nossa cultura seriam úteis para Ocidente. Ainda que não é um antropólogo considera-se um antropólogo genuíno e tem estudado tanto a tradição derviche como os diferentes episódios do xiísmo. Quere estudar-se a si mesmo vendo outros homens e civilizações.

Fiquei um pouco impressionado. Pensei que Akbar estava a dar uma imagem de mim um pouco excessiva. Todos olhavam-me expectantes. E, então, o "comandante-chefe", conhecido como O Aref, falou:

- Uma viagem tão longa denota um verdadeiro interesse e o facto de que seja espanhol é um interesse acrescentado para nós. Estamos habituados a franceses, ingleses, rusos. Poucos espanhóis vêm por aqui.

Ainda que não queria falar de política ouvi-me a mim mesmo dizer:

- Mas parece que o momento não é o melhor, a situação política não pode importuná-los e dificultar as suas acções?

- Levamos centos de anos com estas situações de um modo ou outro. Estamos treinados e preparados e não nos importunam. Só mostramos o que queremos mostrar. Aqui somos mais ou menos "ocidentais". Fora de aqui podemos ser homens piedosos ou tecnocratas. Depende do contexto.

- Mas não têm um compromiso com a liberdade do seu povo? Num momento como este como podem permanecer tão alheios ao que se passa?

- Porquê prejulga que estamos alheios? Ou pensa que seriamos mais úteis no cárcere? Nós temos uma tarefa que está ligada ao destino humano. Não podemos ser tão indulgentes como para pretender mudar as cousas de um dia para outro. Irão leva trinta anos de fanatismo e repressão levado adiante por um excesso de entusiamo e um excesso de ignorância. E não pense que não há pessoas notáveis involucradas. Nesse sentido nós seguimos sendo orientais. Só somos ocidentais por fora. O povo que tanto exalta é o que sustenta o que há e o que houve. Não o esqueça.

-O que queria dizer é que me surpreende o ambiente e tranquilidade desta reunião se tivermos em conta o que acontece na rua.

- Querido amigo, nós não podemos bailar ao som que nos marque a rua. Isso sim seria uma catástrofe. Nestes momentos a calma e a sensatez é o que mais se necessita. A época do derviche louco já passou. Quando tudo enlouquece ao redor devemos mantermo-nos na nossa casa, guardando as nossas famílias e os nossos amigos. Essa é a nossa política. Não percebe que sempre se está a repetir um mesmo filme? O único que mudam são os decorados. Não podemos ficar sobreexcitados pelo filme. Ele está aí para aprender dele.

- Creio que o único que está a trazer um pouco de excitação emocional aqui sou eu!

Todos riram de um modo descontraído e natural. Eu também.

- Isso está relacionado com a longa viagem e as expectativas. Sinta-se à vontade. É normal.
(Continuará)

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