quinta-feira, 9 de julho de 2009

Uma noite em Nishapur III

Tumba de Attar, autor da Conferência dos pássaros.


O Khoração é um lugar especial dentro da tranmissão do conhecimento. Foi ali onde começou um modo de experiência que consistia em imbricar-se nas atividades da vida quotidiana ao mesmo tempo que se desenvolvia um caminho interior ou místico. As pessoas ligadas a artes e ofícios tentam destacar nas suas profissões. Não procuram simplesmente ter êxito senão fazer as cousas bem. Isto é uma maneira de concentrar as energias, de desenvolver uma mestria que reflecte um carácter interior. Em particular figuras como Al Sulami, Abu Hafs, Yusuf Hamadani (há quase mil anos) iniciaram uma atividade que se diferenciava das formas tradicionais dos grupos esotéricos. Nada de identificações exteriores que os sinalassem como especiais. Desconfiança das chamadas experiências místicas (em muitas ocasiões mescla de emocionalismo e imaginação, quando não uma forma de inflamar o ego). Aceitação das normas sociais estabelecidas no lugar no que viviam e conformidade com o poder político que não sufoque as liberdades básicas do ser humano. Respeito pelos diferentes credos e separação dos assuntos espirituais dos temporais, o que leva a uma clara diferenciação do poder político e religioso. Esta perspectiva está ligada ao modo malamati do ensino superior. Estou convencido que se Kant tivesse lido os princípios da escola malamati teria uma opinião muito mais favorável ao verdadeiro significado do misticismo. Para um malamati nenhuma experiência interior tem verdadeiro valor se não está ligada a uma ética pessoal pura e recta, a uma sinceridade total que liga a homem com a sua intenção. Nada de fundar uma clerecia divorciada da vida (recomenda-se como preferível casar e ter uma família), nada de ostentações de rangos. Em algumas ocasiões o malamati tem um comportamento que o desacredita socialmente com o fim de preservar-se da possível hipocresia que suporia ser considerado "bom".


Estávamos no jantar , na ceia em que os amigos compartiam a história de Ali, Muskil Gusha, o disipador de todas as dificuldades. Era uma longa história contada por todos os amigos. A história das vicisitudes dum lenhador viúvo desde o momento em que a filha lhe pede mais e melhores cousas para comer.

Depois ainda se seguiu a conversa, uma agradável velada entre todos. É claro que eu tinha algumas perguntas a fazer mas não sabia se encontraria o momento oportuno ou se as minhas perguntas resultariam um pouco ridículas. Havia algo que inconscientemente tinha na minha cabeça: o facto de que essa gente não tinha uma aparência "religiosa". Eran educados, gentis e com sentido do humor mas se não for porque sabia que seguiam um caminho místico, provavelmente teriam passado despercebidos para mim. Poderia pensar que fossem uma associação cultural de qualquer cousa mas místicos... isso seria o último que pensaria!

Um homem que pasava dos sessenta anos, de nome Hussein, pareceu adivinhar as minhas tribulações, quase ocultas para mim, e falou-me

- Pode que tenha lido muitos livros sobre sufismo mas nós não costumamos falar sobre "sufismo", sobre religião ou teologia. É mais bem raro. As pessoas que aqui vê já passaram essa fase. Não quero dizer que não seja algo que não esteja na nossa formação ou que, individualmente, as pessoas não o façamos como forma de meditar certas verdades mas não são a base da nossa relação pessoal e da nossa dialética.

- Mas imagine que eu tivesse que transmitir a outras pessoas o que vocês são ou fazem. Supostamente são um grupo religioso, uma forma de culto de algum tipo, com um sistema de crenças e tudo isso. Como explico então o que fazem?. Digo que tocam música, que recitam poemas e que são pessoas cordiais com uma sensibilidade especial?

- Pode dizer isso- riu - e garanto-lhe que estaria mais perto da verdade que se diz que somos um grupo religioso ou um culto tal ou qual. No primeiro caso estaria a transmitir factos, mais ou menos idiosincráticos e externos, mas factos. No outro caso estaria a transmitir valorações que dependem muito do condicionamento cultural das pessoas. Que é a religião, que é um culto?. O problema é que damos as cousas por feitas, como se automaticamente as palavras transmitissem o significado por si mesmo. Isso é só um hábito. Se procurar a palavra sufismo numa enciclopédia dirá que é uma espécie de misticismo islâmico. Muitas pessoas ficam tranquilas com isso para bem ou para mal: já têm uma etiqueta. Mas que é realmente a mística, que é realmente o islão?

- Mas terão umas crenças básicas, uns alicerces que possam transmitir.

- Com certeza, mas só como forma de algo que tem uma base no conhecimento. A compreensão e o significado das crenças varia segundo a evolução da pessoa. Se uma pessoa fica com as crenças e não alcança o conhecimento estas são pior que se não tivesse nada. Compreenda que nós não trabalhamos para mudar as crenças das pessoas senão para aprofundar nas que já têm.

- Isto lembra-me a Espinosa.

- Pode ser mas eu confeso-lhe que não sei quem era Espinosa. Não sou filósofo. Sou artesão, fabrico setares, neys, violas. E também toco!

- Desculpe, mas é uma espécie de deformação profissional.

- Não, não se desculpe. Já estou intrigado por saber quem era Espinosa. Também sou filósofo e erudito à minha maneira! Conheço as deformações profissionais em carne própria!
E então Hussein colheu o ney e começou a tocar a peça do seu mestre turco predileto.



(Continuará)

2 comentários:

Oscar de Lis disse...

Impressionante. A medida que avança o relato da experiência, fico mais intrigado!

Mario Aller disse...

Quen poidera chegar ata eses lugares e disfrutar cos recordos da historia. E tamén coñecer ás súas xentes, herdeiras dun pasado tan glorioso.
(Menos mal que estou seguro de Ismaíl sabe de todo iso...)
Saúdos, José Antonio