segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

A noite de Rustam Çiçek I: cometas e noites


Durante semanas Rustam Çiçek desaparecia de Istambul. Era uma incógnita saber os seu lugares, as suas paragens, onde pousaram os seu olhos, em que desertos e poeiras tinha deambulado. Secretamente desaparecia. Tão só Ibrahim parecia intui-lo e, como gatos em harmonia, desapareciam ambos, mas em diferentes direções . Dizia-se que Rustam se perdia na sua Anatólia natal, que deambulava pelos caminhos perdidos das pequenas aldeias e vilas alonjados da civilização para rencontra-se consigo próprio, para além das identidades que os "cidadãos"se empenhavam em atribuir-lhe e que, afinal, começavam subtilmente a pesar sobre a sua consciência. Era então o momento de apanhar os caminhos de poeiras e sóis, de chuvas e neves. Como um rei disfarçado de mendigo, Rustam Çiçek sentia a verdadeira liberdade das planícies e dos campos, das devastadas pedras da Capadócia, sentia as suas mãos e os seus pes ao compasso do seu bordão como um ancião pastor da antiga Grécia. Os versos surgiam então nos sorrisos das raparigas descalças das terras nuas do interior. A pobreza que a civilização avara e paranoica se esforçava por eliminar da sua consciência refulgia ali na sua pureza essencial. Era a riqueza essencial do ser: o seu riso vivo e trascendente. Então recordava as palavras de Saadi de Shiraz, o velho e generoso mestre persa:
- Tão avaros que se o sol caisse no seu prato nunca mais ninguém veria a luz do dia.

E ria só, de aquela maneira como só podem rir as crianças e os loucos. Ele, o viageiro perdido da sua terra natal. Então surgia o breve poema:


Os teus olhos, irmã

nasceram na noite primigénia

ambos seremos poeira como as pedras

e as areias de Anatólia

mas os teus olhos perdurarão

e o meu amor perdurará

como perduram pedras e

poeira em Anatólia.


Ou também:


O teu sorriso iluminou o sol

entristecido nas nuvens,

rapariga dos astros

E agora os teu cabelos ardem

e o vento sussurra:

- Dança, dança.



E Çiçek podia iniciar um baile no Sol-Pôr, não uma dança frenética mas pausada e ágil, cheia de graça e harmonia. Era uma dança hierática e sinuosa, como um estranho mimo que se movesse por entre os espectros da Guerra de Troia.


O espectáculo de um louco solitário e livre dos simples e honestos costumes dos "cidadãos".


Podia ouvir então "Cometas e noites" ou "Noites e noite" (Shahâbhâ va shabhâ), do poeta persa.


Az zolmat-e ramide khabar midehad sahar
shab raft o bâ sepide khabar midehad sahar
az akhtar-e shabân rame-ye shab ramid o raft
az rafte o ramide khabar midehad sahar



De uma rebelião contra o obscuro fala a alva

a noite foi-se e com a aurora fala a alva

a multidão assustada vaga na longa noite

a estrela do pastor foi-se embora

e de um obscuro temor ao longe fala a alva.






1 comentário:

Casteleiro disse...

Ó tu, que varres a estepes, as tuas lágrimas caem como notas sobre a minha alma.