terça-feira, 21 de abril de 2009

Teoria filosófica: a imaginação.


“A fundamentação kantiana da metafísica conduz face a imaginação transcendental. Esta última é a raiz de âmbos ramos: sensibilidade e entendimento. A imaginação transcendental como tal possibilita a unidade originária da síntese ontológica. Esta raiz está arraigada no tempo originário. O fundamento originário que se revela na fundamentação é o tempo. A fundamentação kantiana da metafísica parte da metaphysica generalis e converte-se na pergunta acerca da possibilidade da ontologia em geral. Esta põe o problema da essência da constituição ontológica, quer dizer, o problema do ser em geral”


(Kant e o problema da metafísica, M. Heidegger) 1


1.


A meditação heideggeriana que visa iluminar os problemas surgidos da viragem kantiana entre a 1ª e 2ª edições da Crítica da Razão Pura testemunham a ambiguidade problemâtica e conflituosa que a imaginação desempenha no âmbito filósofico da nossa tradição ocidental. De um lado reconhecida como potência essencial e genesíaca, de outro preterida pelas consequências que uma coerente e comprometida investigação poderia chegar a mostrar. Tal parece o recuar de Kant na 2ª edição, até ao ponto de comprometer a coerência interna da Crítica nas partes essencias relativas à dedução transcendental e o esquematismo. Este recuar perante a “desconhecida raiz comum” tem ainda uma dimensão muito singular e que deveria ter sido atendida de um jeito subtil pelas implicações que tem numa visão holística do conhecimento: trata-se da relação que se establece entre a “imaginação transcendental” e a razão prática. O problema não é tão só uma questão que se ponha do lado da razão teorética mas algo que se enraiza na determinação do “ethos”, o que muitas vezes é esquecido. Os motivos de este esquecimento são por si mesmos objecto de reflexão, mas levaria-nos fora da intenção presente2. A questão refere-se à consideração do “sentimento” de respeito na lei moral (do imperativo categórico) e a sua base ontológico-metafísica. A essência do respeito, a sua estrutura, segundo Heidegger, mostra a constituição originária da imaginação transcedental, neste caso como entrega imediata que se submete, como receptividade pura, ao mesmo tempo que acolhe a livre imposição da lei como espontaneidade pura, unidas em si originariamente. E isto fazendo-se patente de um jeito que não é objectivante nem tematizante. No respeito faz-se manifesto um dever originario e um actuar originário além de toda reflexão ou cisão determinante.
Vemos, seguindo esta interpretação de Heidegger, que nos parece rigorosa e subtil, como a imaginação transcendental tem realmente uma primacia ontológica que a situa nos alicerces das três perguntas kantianas ressumidas na questão: Que é o homem? Como responder a esta sem tomar em conta as dimensões transcendentais mas também empíricas da imaginação?. Uma das questões chocantes para uma tradição racionalista está dada no facto de vir explicar-se a razão pela imaginação, mesmo que seja “em última instância”. Não é de estranhar que Kant recua-se. Mas, no fundo, este recuar tem uma dimensão que vai muito além de uma simples questao académica, evidencia a tácita resposta que o homem ocidental dá a esta questão: o homem é aquilo que eu sou. Até certo ponto é quase inevitável. Certo sentido do rigor, da seriedade e da honestidade quase o impõem num homem como Kant. Outro tanto lembra-nos Marinho de Espinosa: as circuntâncias epocais e o modelo cartesiano fazem que a imaginação fique desvalorizada mesmo que reconhecida na sua potência originária. De facto parece existir uma experiência negativa e agnósica da imaginação que contrasta com a sua importância ontológica e transcendental, em Espinosa e Kant respectivamente. Tem-se medo de aprofundar numa intuição que poderia arruinar a estruturação lógica da filosofia. Se se pensa que Kant reestabelece a questão da imaginação na Crítica da Faculdade de Julgar isto só é medianamente certo. Reestabelece-se uma visão “sentimental”, muito interesante e provavelmente mais compreensiva que a teoria estética hegeliana, mas limitada pelo seu “agnosticismo” no sentido etimológico do termo. As suas vantagens são a sua perspectiva não-formalista que são o embrião de uma deconstrução representacional e sobretudo existencial, portanto não no sentido derrideano, que poderia ser levada adiante sem terem em conta a letra kantiana3. Mas isto leva-nos longe, bastante longe. Fora dos limites da lógica e da experiência de “Ocidente”4.


2.


“Aquí, a tarefa surge-nos já muito simplificada, se tivermos em mente que a imagem nos dá o trânsito do passado para o presente, como memória, como lembrança ou então como instância mais funda da memória, instância a todo momento oculta pela memória empírica do que extrinsecamente somos e surge: é então a reminiscência ou, para empregar a significativa palavra, saudade”
(Imagem e imaginação, José Marinho)
5


Marinho recupera a forma clássica em que desde o platonismo é vista a imaginação: como a intermediária entre a sensação e ideia. Ora bem, se isto se compreende bem, poderá ver-se que o sentido que possa ter aqui “ideia” é bem diferente do “mentalismo” da tradição com que os modernos tentaram reduzi-la. Assim “ideia”não seria a forma superior da “ratio” mas da “imaginatio”. Falarmos da relação entre sensação, imaginação e ideia seria o mesmo que decifrar a relação entre raiz, ramos, flor e fruto. Tudo é árvore. A árvore é o esquema básico da imaginação, a sua imagem: a imagem condensada que desvela a sua potencialidade. Se esta é a imagem utilizada por Aristóteles para apresentar o par de conceitos dynamis/energeia ligado à essência mesma da physis, tal é a metáfora que melhor se aplica à imaginação como potência seminal, originária, ao mesmo tempo que final, no processo do conhecimento6.
A saudade é vista por Marinho como um movimento seminal, ligada ao tempo originário. É claro que é uma instância que não pode coincidir com o tempo empírico. O tempo empírico é já o correlato de um espaço semantizado pela actividade fixadora do ego, do ego empírico. A ideia de reminiscência como movimento íntimo que vai além e aquém da historicidade fundamenta-se na relação que percorre intimamente a sensação ou o sentir até a visão unívoca. Ora bem, o que aparece intimamente como um acto de recordatório ou de lembrança é, na verdade, uma actividade imaginal criativa. A experiência subjectiva pode mascarar a realidade ontológica e a sua presença transferindo-a imaginariamente ao “passado” mas isto é tão só uma percepção da subjectividade empírica que pode precissar destes marcos referenciais. Entre a experiência e a compreensão da experiência há sempre uma diferença qualitativa. Neste sentido é possível falar de saudade do futuro. Existe uma ilusão de origem que é, ao mesmo tempo, correlato fenomenológico da saudade. Continuando com a metáfora da árvore, seria como se a semente no seu processo de crescimento e no seu desabrochar sentisse “saudade” de um estado “anterior”, quando na verdade é aquilo que a conduz a um estado “posterior”. Sem dúvida, se é possível falar de um tempo anterior, não é possivel referi-lo à historicidade da semente. Entramos assim no conceito tempo originário. Poderiamos dizer também tempo mítico. E também ao problema do tempo e dos tempos e a sua relação com a consciência, mas isto ainda deve esperar. Antes é necessário continuar desvendando relações entre a lembrança e a imaginação.


As palavras recordar, aprender de cor, fazem referência ao órgão de experiência espiritual e emocional de todas as grandes tradições místicas: o coração. Em sentido eminente não é do órgão físico que estamos a falar, mas de um órgão de percepção espiritual ainda que, obviamente, há correspondências. Há uma clara relação entre memória e imaginação através do coração como órgão de percepção teofánica. Neste sentido a filosofia ocidental é uma ciência sem coração, ou não sendo isso possível, com um coração embrionário, imaturo. O facto de não chegar a uma doutrina espiritual da percepção denota o seu estado embrionário e “sentimental”. Temos um coração sentimental mas não um coração espiritual, e é por causa disso que não existe uma autêntica doutrina da imaginação que tenha sido tomada a sério pelos grandes filósofos. Muita peocupação pela estética e pouca ou nenhuma pela beleza, a verdade e a bondade. Justamente o contrário do que tradicionalmente aconteceu no Oriente, o que se traduz numa estética anagógica, simbólica, de altos conteúdos intelectuais7. Para podermos fazer uma teoria da imaginação contemplativa é preciso ser depositário de tal conhecimento. É mais fácil negar este conhecimento a outros que afirmá-lo num próprio.


Todo o movimento entre memória e imaginação faz referência à capacidade visionária do coração em cujo segredo reside a função cognitiva essencial que pode ser comparada às leis de uma “poética trascendental” no mesmo sentido que falamos de uma “lógica trascendental” ao referirmo-nos à razão. Ainda que a a palavra ou logos pareça estar ligada à lógica, de facto não é assim. A poética denota a especificidade da linguagem como metáfora e como símbolo, a sua especificidade anterior à sua logicidade. Mostra também a sua dimensão mítica. O mito é, literalmente, uma fala mas refere a fala ou linguagem dos pássaros. A linguagem original adámica antes de Babel: os homens falavam diversas línguas mas compreendiam-se, pois falavam a linguagem do coração.8 O sentido ontológico de este órgão subtil enraizado na imaginação supera qualquer fixação de uma realidade objectiva, que não seja uma função criativa do próprio órgão, a função divina de uma criação constante.


3.


“Na verdade o mundo é imaginação. É Deus lembrando-se de si em concordância com a sua realidade essencial”
(Ibn al Arabi, Fusus al –Hikam, Os engastes da sabedoria)



O anteriormente exprimido tem um exemplo notório na obra poética de Luis de Camões. Todos conhecemos o poema intitulado Verdes são os campos, poema que foi cantado pelo Zeca Afonso de um jeito extraordinário. Recordemo-lo9:


Mote alheio:


Verdes são os campos
Da cor do limão:
Assi são os olhos
Do meu coração


Voltas:


Campo que te estendes
Com verdura bela
Ovelhas que nela
Vosso pasto tendes,
D’ érvas vos mantendes
Que traz o Verão,
E e eu das lembranças
Do meu coração.
Gado que paceis
C’o contentamento,
Vosso mantimento
não o entendeis;
isso que comeis
não são ervas, não:
são graças dos olhos
do meu coração.




Não há muito que comentar depois do já dito mas faz-se explícita a correlação existente entre visão-lembrança-coração-imaginação criativa. O poema, de um bucolismo aparente, revela-se um poema inspirado pela doutrina da imaginação mais em corcondância com os místicos da cardiognose. De facto, a compreensão do poema só pode ser feita se a pusermos em conexão com a doutrina do Homem Completo, Homem Verdadeiro, que com diferentes nomes é apresentada nas grandes tradições espirituais10


De facto esta aí o segredo da ontogênese com fundamento na imaginação conforme à realidade essencial de Deus, tal e como diz Ibn al-Arabi. A pergunta kantiana pelo o homem traslada-se de uma antropologia a uma antroposofia e de esta a uma teoantroposofia.



4.


“Então esses postos erguidos eram postos de lâmpadas de arco voltaico e todos as manhãs vinha um homem com uma malinha e por meio de uma manivela que trazia, fazia descer a lâmpada e tirava carvões já carcomidos, gastos, punha carvões novos, accionava o interruptor, verificava que a lâmpada brilhava, accionava de novo a manivela, subia a lâmpada...
Repetidas vezes vi isto, nunca mais se apagou em mim, a memória, ou a lembrança deste acontecimento. E quereis agora saber que no meu tão parco saber da imagem isto ficou para sempre!... Fui levado a perguntar-me se esta imagem não era algo como um ser real em mim, como outra consciência de mim em mim, algo que fosse profético, algo que tivesse sentido de que eu tivesse de saber muito bem...”


(Imagem e imaginação, José Marinho)



No seu livro Nicho de Luzes o grande teólogo e místico Al- Gazali estabelece uma fenomenologia da experiência espiritual a partir das diferentes comprensões da manifestações de luz, dos mundos imaginais intermediários e a actividade do coração. Faz o comentario Sura da Luz do Corão que diz:


Deus é a luz
dos céus e a terra
a luz de Deus é comparável
a um nicho no que há uma lâmpada
lâmpada num fanal de vidro,
fanal de vidro qual estrela brilhante ,
aceso no óleo duma árvore benta, uma oliveira,
que não é do Oriente nem do Ocidente,
a sua luz quase luminosa
ainda que não a toque o fogo.
Luz sobre luz!
Deus guia face a Sua Luz aqueles que quere.
Deus propõe parábolas aos homens.
Deus é sempre sábio
(Corão, XXIV, 35)


O que era um comentário inicial sobre a fenomenologia da imaginação transcendental desenvolve a sua rota para além de uma coerência excesivamente explícita que, porém, quer ter o seu final numa imagem que faça reflectir no elemento essencial de um “ethos” que permita conectar com aquilo que o leitor deve armar por si mesmo. Não seria muito pedagógico dar tudo feito. Há coisas que é presisso ainda arrumar e armar.


Gostaria de acabar com a história do encontro de dois grandes mestres do taçawwuf (sufismo), Abu Hafs e Junaid. O primeiro pertencia à tradição do Khoração muito ligada à experiência e desligada da intelectualização, o segundo era um místico e filósofo. Abu Hafs era ferreiro e dizia-se que não falava árabe. Foi então que Junaid lhe fez uma pregunta: - Qué é a Futuwah?. “Responde tu mesmo, disse-lhe Abu Hafs, vos tendes a expressão e a linguagem”. Junaid disse: “Para mim a Futuwah consiste em abolir a visão do ego e romper todos os laços diferentes à relação directa com Deus” . “O que dizes é muito formoso, respondeu Abu Hafs, mas para mim a Futuwah consiste sobretudo em obrar com rectidão e não exigir ao próximo que faça outro tanto”. Perante esta resposta Junaid pediu a todos os companheiros que se levantassem, pois, segundo ele, Abu Hafs acabava de dar uma definição da Futuwah insuperável.11



1 Kant y el problema de la metafísica, Martin Heidegger, F.C.E, 1986.
2 Tão só dizer que é sintomâtico de uma censura que opera como um bloqueio que impede ver as fundas relações da razão prática com o conhecimento humano. A ética não é algo que permite decidir entre um bom ou mau uso de um conhecimento que está ai dado. Num sentido essencial é a que permite orientar o rumo certo que produz ou descobre um conhecimento abrangente e total ao serviço do homem como fim. A outra perspectiva foca os problemas trucados ou carregados de antemão o que faz que muitas vezes não se compreenda o dito: “A resposta a um néscio é o silêncio”.
3 De facto sempre é necesário ter em conta a letra. Em todo o caso esta pode ser concebida como um dedo indicador que aponta além de si. Esta é a intenção com que se apresenta o primeiro ponto destes apontamentos.
4 Não entendo Ocidente num sentido geográfico mas como parte de uma geografia simbólica. O ocidental é o homem histórico e racional.
5 Conferência
6 A árvore ou a planta partem da cegueira da escuridão, da potencialidade não manifestada elevando-se por mor dum tropismo à procura da luz. Tal a especificidade íntima da physis. Pensemos ainda na metáfora “desconhecida raiz comum” ligada à imaginação transcendental e o tempo originário.
7 O sentido intelectual original, é claro. Não a razão mas o intelecto, e particularmente o intelecto contemplativo, não o discursivo
8 De facto, a transmissão iniciática de um mestre para com um discípulo é de coração a coração. Trata-se de uma actividade de concentração que é activada pelo poder da himma (no esoterismo sufi significa o poder criativo do coração), projectando o mestre sobre o discipulo a condição espiritual que lhe quer fazer alcançar. De facto há casos de discípulos notáveis que mantêm relação espiritual com um mestre sem quase ter intercambiado palavras durante anos e mesmo sem um contacto físico. É obvio que o poder do coração está ligado a poderes como a telepatia, a projeccção espiritual e à corporização espiritual, etc. Ibn al- Arabi dá multiplos exemplos da actividade de este órgao subtil (latifa)Cfr. La imaginación creativa en el sufismo de Ibn ‘Arabî, Henry CORBIN, Ed. Destino, Barcelona, ou também o livro muito claro intitulado Mundos imaginales: Ibn al-Arabi y la diversidad de las creencias, William C. CHITTICK, Ed Alquitara, Sevilla.(Neste último matizam-se as consideraçes de Corbin sobre o Ta´wil, a hermenêutica espiritual, pois há erros na interpretaçao do francês com respeito aos mestres clássicos)
9 Doce Canto em Terra Alheia?,Ed Laiovento, 1994. Santiago de Compostela (antologia camoniana)
10 Particularmente na tradição sufi é conhecida pela doutrina do Insani-i-Kamil. Aquele que alcançou a sua regeneração espiritual permanente. É ele o que pode dizer: “isso que comeis/ não são ervas, não:/são graças dos olhos/ do meu coração”. No taoismo é conhecido como Homem Verdadeiro. Existem ainda outros nomes mas a realidade designada é a mesma.
11 Futuwah, Al Sulami, Paidos Orientalia, 1991. Notas de Faouzi Skali.

1 comentário:

José António Lozano disse...

Depois de alguns problemas técnicos parece que agora vai melhor a apresentação do texto. Foi feito num estilo que não é do agrado de Rustam Çiçek. Mas não carece totalmente de valor e é provável que o meu amigo ainda solte algumas disquisições proximamente. Peço desculpa pela afectação do estilo. Tem vários anos e ninguém nasceu sábio e isento de "tonteria"