Houve uma vez uma estranha luta entre reinos. Foi um combate surdo durante anos, cheio de medos e desesperanças.
Desde sempre Lig e Lung estavam destinados a matar-se mas ninguém sabia o porquê. O facto de que o motivo fosse desconhecido não mitigava o ardor de destruição. Pelo contrário: de um jeito subterrâneo acovilhava-se na consciência, inspirava os escritos dos poetas, as palavras justificadoras dos historiadores ou a mera organização do lezer. Pior que um motivo concreto actuava este fantasma, pois cada acto devia recordar a necessidade de destruir ao inimigo, reforçando a íntima consciência dum vazio íntimo que revelaria a inanidade e o sem-sentido de este ódio atávico.
O estranho é que Lig e Lung nunca se tinham visto. Nunca tinham falado, nunca intercambiaram uma frase, nunca entraram em contacto de modo algum. Mas odiavam-se desde sempre.
Por mais estranho que pareça a vida destes dous reis era idéntica en todo ponto, até nos mais mínimos detalhes cumpriam um ritual mimético. Eram como dous reinos indiscerníveis separados por um rio que, diziam, fazia cair no esquecimento a quem o atravessasse. E havia muitos motivos para não atravessá-lo.
Durante muitos anos em ambos reinos se falava sobre o terrorífica que era a vida do outro lado. Do tiránicos, canibais e absurdos que eram o seus habitantes e como isso era uma afrenta para a própria identidade. Em qualquer momento podiam invadir o reino contrário. E então deixariamos de ser a nação Lig ou a nação Lung!
E assim viviam uns frente aos outros.
Mas é claro que lá no fundo do fundo da íntima consciência dos reis havía uma Dúvida e também uma Curiosidade. Como seria Lig, como seria Lung?, perguntavam-se na essência desconhecida da sua intimidade esquecida.
Um bom dia convocaram aos melhores pintores e disseram:
- Por ordem real visitaréis o Inimigo, chegaréis ao palácio real e desenharéis um retrato do rei. É o nosso real desejo, a nossa real necessidade e a nossa real ordem. Temos realmente dito!
Num princípio ninguém comprendeu nada. A ordem era absurda. Como se de súbito lhes tivessem mandado escalar a lua. Era REAL a ordem do rei?
Pois devia ser, porque rapidamente foram postos nos limites da cidade, enviados como mendigos para melhor cumprir a sua função de espiões-pintores.
Como uma caravana de almas em pena iam os artistas rumo ao rio do esquecimento mas o medo acumulado durante gerações produziu a ousadia de uma Invenção.
Sim, os artistas não obedeceriam ao rei. Eles inventariam um retrato. E assim surgiu a Mentira.
Os pintores fechavam os olhos e imaginavam o rosto de um rei, pintavam-no com detalhe mas a sua imaginação apenas podia conceber um rosto que não fosse o do seu próprio rei. Como poderiam imaginar um rosto que não tivesse o rosto do rei, do seu único e absoluto rei?
Assim pois, apresentaram o retrato com todo tipo de explicações.
Lig e Lung levaram as telas para os seu quartos. Na solidão queriam contemplá-los. Aí queriam saborear o frenesi dos seus medos perante o desconhecido mas um arrepio envolveu a ambos ao abrir o envoltório. Eles eram o inimigo, o inimigo eram eles. Houve um momento de frustração e de fúria, uma ira que surgia dos abismos do ser queimava-lhes as vísceras. Mas a pouco e pouco chegou a calma e a Decisão.
E foi assim como uma mentira se converteu em Verdade. Ali, na planície dos exércitos devastados e dos homens desmembrados, no centro da poeira ilimitada, sob o sol-pôr, Lig e Lung se dão morte, amando-se e odiando-se na intimidade dos seu olhos, na súbita consciência da sua identidade especular.
Justo quando o sol é devorado pela terra jazem Lig e Lung abraçados e mortos.
Fora da história
O bobo e o poeta louco, as crianças e as mulheres, os pintores encarcerados, os sábios apedrejados estão de festa. Ouvem-se as suas canções no rio, as suas anedotas, as sua músicas. São belos e lentos funeráis de ledice. Surgem os contos da rapariga descalça. Há batalhas de flores numa procisão de barcos sobre o rio, o rio da memória e da vida.
Canção
Barcos que vais sobre o rio
canto-vos uma cantiga
Ó barcos que vais no fio
com flores da minha amiga.
Barcarolinhas da lua
deixai que morra o morrido
que volte o tempo perdido
para bailar na falua.
Fonte da memória viva
rio do sentido nu
despo-me sem eu nem tu
para que fuja a cativa.
Barcos, barcas e barcarolas
iluminando os caminhos
fachos, faróis e farolas
de crianças e marinhos.
Barcos que vais sobre o rio
canto-vos uma cantiga
Ó barcos que vais no fio
1 comentário:
Trata-se duma versão abreviada dum conto ao que se fazia alusão num texto intitulado "Retrato antigo: pinturas e superfícies" que foi publicado e premiado há bastantes anos. Proximamente publicarei-no aqui.
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