segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Transferência


Algumas vezes tenho ouvido a crítica que põe o facto de não ser necessário buscar o conhecimento em fontes orientais. Que a riqueza do pensamento e da tradição ocidental é suficiente por si mesma. Isto deve-se a que não falamos das mesmas cousas e dos mesmos significados. Quando com vinte e três ou vinte e quatro anos comecei a compreender que Nietzsche, Spinoza, Heidegger ou Kant não eram completos não o pensava só desde a perspectiva teorética. Era a sensação vital e existencial de que essas pessoas não eram realizadas. Em certo modo viviam de ideais. Poderia dizer-se que a eiva do pensamento ocidental é o seu idealismo.

Paralelamente a isso pode ver-se como se trata de um experimentalismo carente de sabedoria: toda a psicologia desde Freud em adiante mostra-o claramente. A psicanálise carrega um sentimento de culpabilidade e uma linguagem nefasta para o ser humano. Por um lado dá mas por outro tira. Se analisarmos a figura de Freud vemos como se transfire toda uma psicologia da perda e da culpa aos seus seguidores. Há dogmatismo, irracionalismo e obcecação com o tema sexual. Há sofrimento gratuíto. Há também ignorância sobre o ser humano.

Estas são afirmações fortes mas sei do que falo. O certo é que não se pode improvisar uma tradição nem descobri-la através do esforço e a heroicidade do século XIX e XX. O homem existe desde muito antes e não foi inventado pela revolução científica moderna ainda que, às vezes, pareça pretendê-lo.

A sensação que eu tinha é que essas pessoas andavam buscando mas ainda não encontraram. Comprometiam a outros e negavam as possibilidades que outros mais sábios lhes podessem oferecer na abertura de um caminho para a realização. Muitos só queriam defender as suas teorias contra outras teorias. Reconheciam a sua ignorância para a continuação comportar-se e dogmatizar sobre o divino e humano como se fossem deuses. Existia e existe uma inconsciência nefasta dos próprios limites. Sempre falam dos problemas que solucionam mas não dos que causam. É a mesma história que se nos falam da civilização ocidental mostrando-nos o Parlamento inglês e a Ilustração e obviando o colonialismo, o capitalismo e os massacres e genocídios do S.XX.

Mas o surpreendente é que esta crítica é assumida por muitos ocidentais para criar um malestar ou uma consciência de culpa sem assumir mais nada. Por exemplo, aceitar que os outros podem ter algo que ensinar também. Que não são só uns coitados e umas vítimas. Que podem ter um valor superior. Sim, a palavra própria é superior.

O conhecimento que é superior é aquele que dá razão autêntica da existência humana e tem os seus próprios profissionais como qualquer cousa na vida. Se das bases estabelecidas no S.XVII para o estudo da natureza se chega à bomba atómica, das bases estabelecidas muito antes sobre o mêtodo e a sabedoria se chega ao verdadeiro ser humano. Isto está plasmado de jeito ininterrumpido até a actualidade no Oriente. E se agora se encontra em Ocidente é justo reconhecer esta dívida com equidade.

Eu tenho uma frase sobre a maneira em que se podem assumir "as sabedorias" de todos os lugares e tempos para a construção de algo que é tão antigo como o ser humano.


"Se leste a Nietzsche e chegaste à Tradição essencial, então realmente leste a Nietzsche
se leste a Nietzsche e es nietzscheano só te estás justificando"

5 comentários:

Anónimo disse...

Parece fundamental, cada vez mais, avançarmos no conhecimento de Oriente ou, melhor dito, daquilo tudo que -negativamente- possamos denominar de não-Ocidente. Há um imperativo não só moral e de pensamento que nos obriga a questionar as certidões que oferecem a nossa civilização e esse engendro acrítico denominado world culture, que não é cultura, mas que nos impõe comportarmo-nos como se fosse. Parabéns, mais uma vez, por abrires-nos uma janela.

Doutra parte, estamos a levar um pequeno debate no Funambulista Coxo que pode vir ao tema deste último artigo teu. Acho que pode resultar interessante a ti e a quem te vir ler.

http://ofunambulistacoxo.blogspot.com/2009/10/razon-emocion-e-poesia-partir-dun-libro.html

José António Lozano disse...

Em certo modo o melhor de Oriente e Ocidente se encontram de algum modo. Sempre é assim mas o certo é que a ascendência e a ênfase na formação integral do ser humano sempre foi algo que todos percebemos, mesmo de um modo acrítico, como oriental. Mas Oriente é algo muito extenso, muito variado e com mais diferenças internas que as que possamos imaginar.
Uma cousa que é de notar é que o sábio ocidental está ao serviço do estado ou dos estados. Não tem autonomia e até os programas de investigação são sancionados por interesses não necessariamente científicos ou, pelo menos, humanos.
A sabedoria tradicional e o sábio tadicional tem claro que ele é o que manda e não há trato nem "consenso" nem "transigência" com o conhecimento que é vital para a huamnidade até o ponto que se se deixasse de transmitir, de facto, a humanidade desapareceria (Ibn Arabi, Al Ghazali e outros dixit). Este é o conhecimento do que realmente se fala.
Mas aqui julga-se às pessoas pela sua aparência, se têm boa voz, gravata, um nariz adequado e "resulta de aparência convincente e séria". E é tão facil levar às `pessoas a comungar com rodas de moinho até com discursos "sérios e convincentes" que é necessário um Nasrudin que nos liberte de esse velho tirano. Enfim, o velho conto do Imperador nu.
Em todo o caso eu sou ocidental e não me penso fazer "oriental" mas é preciso estabelecer os próprios termos de referência e a quem lhe damos o nosso crêdito. Madoffs há muitos.

Esdedesear disse...

Me viene a la memoria (al margen del contenido de tu post, del que siempre salgo enriquecida), en el plano personal, un comentario que le escuché a Vattimo, que participaba en un seminario junto con Severino (opuestos en sus planteamientos filosóficos y periodísticos). Dijo Váttimo: "Todos conoceis mis diferencias con Severino, sin embargo yo le entregaría las llaves de mi casa, porque sé que hablamos el mismo lenguaje". Lo mismo te digo, sabes que tienes las llaves de mi casa aunque nos opongamos en cuanto a Freud. Un abrazo.

Casteleiro disse...

Um prazer ler-vos. Há algo muito útil nisto, lembra-me a certa cousa que há anos li a um sábio indiano: sabem por que é que há budistas? Porque não compreenderam realmente o Buda.

Bom, o homem que dixo isto, Krishnamurti, ele mesmo reconhecidamente incompleto e inválido como mestre, crescera numa ambiência que propiciava, polo menos, o exame da própria perspectiva, a consciência da interferência que o condicionamento faz na nossa visão do mundo e de nós mesmos. E de como esse exame do condicionamento, de toda índole, é consubstancial ao verdadeiro progresso.

Graças por lembrar-me uma prática quotidiana que me resulta tão precisa e fértil.

José António Lozano disse...

Querida Conchita,
y además el ofrecimiento es algo literal. Nuestros acuerdos o desacuerdos en términos "teóricos" son irrelevantes.
Una de las anécdotas que me gustan más de la tradición oriental es la de Ibrahim bem Adam. El fue una figura histórica, era rey y renunció al trono de Balk en Afganistán para seguir el camino sufí (como Buda antes).
Tuvo muchos trabajos y nunca decía quien era. Un día, después de llevar tres años trabajando en una plantación su amo lo hizo llamar y le pidió unos melones. Cuando se los llevó el amo se irritó:

- Estos melones están verdes. ¿Llevas aquí tres años y todavía no sabes cuales son los verdes y los maduros?
- Se me contrató para cuidarlos, no para probarlos- respondió Ibrahim.
Entonces el amo comprendió que ese debía ser Ibrahim bem Adam.

Un gran beso Conchita.