Rustam Çiçek gostava de parar pelos cafés de Istambul. Entre gatos e redes por arranjar o poeta- filósofo conversava às vezes com os amigos ocasionais que o visitavam. Os guindastes, as gaivotas, o cheiro mesturado do mar e o peixe apodrecido, restos de petróleo, azeites...e o café faziam um cenário filosófico adequado.
- A filosofia não existe como história. Para nós os filósofos não são mais do que materiais para compor um novo tapete. Platão, Spinoza, Kant. Que são? Um material disponível como se fossem novelos de lã que é preciso tecer harmoniosamente de jeito absolutamente pessoal. Eles podem ser fios entretecidos e trabalhados com tinturas adequadas. Um fio platónico, outro de Spinoza, um outro de Nietzsche. É preciso entretecê-los bem, fazendo uma trama densa, que possa suportar as inclemências do tempo mas, sobretudo, desenvolvendo harmonia e beleza.
- E valem todos os materiais?
- Em teoria sim. Na prática há que ser muito experto. Por exemplo, Hegel é um perigo e um risco de destruição dos materiais. Esta feito com elementos magnéticos que actuam como um buraco negro. Se tiveres a "Fenomenologia do espírito" na mão podes comprovar isso, parece que está cheia de ferro imantado, pólo positivo contra pólo positivo e negativo contra negativo. É um acto de força monstruosa, não há harmonia nem beleza excepto a que algumas pessoas encontram na força e no poder. Mas poderia ser usado (em proporções ínfimas) por pessoas que estejam dispostas a criar certos efeitos especiais.
- Não compreendo bem o que queres dizer, é tudo críptico de mais.
- Sabes? A verdadeira filosofia é mais um trabalho de mulheres. É preciso observar o que as mulheres fazem, a maneira em que tecem a vida sem serem as protagonistas. Sempre falamos de filósofos homens mas aí não está a verdadeira filosofia. Podem ser condensações ou nódulos, mas falta o con-texto (o tecido completo).
-Não é algo importante.
-É algo essencial, o que é diferente. Uma textura possui diferentes grossores, utilidades, colorações. Como reduzir isso a uma questão puramente formal?
- Então as perguntas não têm respostas?
- Fazer-se responsável, dar uma resposta, é como fazer uma obra de arte. É algo absolutamente pessoal. Há perguntas e respostas mas são as íntimas dum dialogo próprio. Muitas perguntas estão carregadas como dados trucados. Uma falsa pergunta leva necessariamente a uma falsa resposta.
- Ás vezes a falsidade está na exigência de certas perguntas a ter uma resposta.
- Como quando Kant pretende que digamos a verdade a uns assassinos sobre o que está escondido na nossa casa.
-Mais ou menos.
Alguns homens arranjavam velas no cais de Istambul enquanto Rustam Çiçek deixava que o fumo do seu cigarro desenha-se estranhas formas, hieroglifos do Bósforo. Recordava alguma ocasional frase de Heráclito:
"O Senhor que é do Oráculo de Delfos não diz nem oculta: faz sinais"
Rustam Çiçek desaparecia entre barcos e tabaco, entre gatos vadios como as suas conversas sem princípio nem fim.
1 comentário:
Graças, polo texto, especialmente polo fio branco, embora tenha o seu requinte o preto também.
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