domingo, 12 de julho de 2009

Uma noite em Nishapur IV


Quando Hussein acabou de tocar, e quase como uma premonição, uma intensa tormenta eléctrica acercava-nos à meia noite. Uns minutos mais tarde começou uma chuva intensa, selvagem. Era inabitual nesta época do ano. O ambiente pareceu tomar uma especial intensidade. Percebi como os olhos dos amigos brilhavam, havia uma carga especial no ambiente. De súbito tive a sensação de estar num lugar recôndito e perdido da civilização, habitado por seres procedentes dos quatro cantos da terra. Senti algo profundamente familiar, como se já os tivesse conhecido antes, como se todo isso já fosse vivido outrora ou quiçá sonhado.

Fátima era uma mulher de uns quarenta e cinco anos. Exprimia-se com uma jovialidade e uma viveza que contrastava com a sua voz grave e harmoniosa a um tempo. Transmitia uma confiança e uma tranquilidade essenciais. Tudo no seu corpo reflectia uma cadência musical e uma cálida simpatia que se fazia ainda mais patente quando escutava ao outro. Não só falava de um modo que um desejava que não parasse, era um gozo observá-la, mas era um pessoa que realmente ouvia ao outro. Isto percebe-se, o mesmo que o contrário.


- Considere o seguinte- falou Fátima. Hoje somos aqui quinze pessoas mas somos menos dum terço das que poderiamos estar. Logicamente as condições políticas têm a ver com isso mas para nós tudo está ligado. Por exemplo, coincide que você está aqui, que pessoas que são habituais nestas reuniões hoje não chegaram, que há uma tormenta fora e tudo isso e mais detalhes compõem uma situação que não se repetirá. É provável que nunca mais nos voltemos a ver, quase com toda probabilidade não coincidiremos as mesmas pessoas numa situação semelhante. Tudo isto é óbvio, é assim sempre, em todas as situações mas no nosso caso tem uma relevância especial. Poderia acontecer que esta mesma situação se repetisse dentro de seis meses com as mesmas pessoas e a impressão que levasse poderia ser muito diferente. Tanto das pessoas individuais como do grupo.


- Não alcanço a compreender o que me quere transmitir.


- Tudo muda no nosso trabalho. Na vida ordinária as pessoas não cambiam. Têm mudanças emocionais e temperamentais, acontecem cousas, obviamente, mas básicamente a pessoa é a mesma. Aqui não é assim: não podemos julgar uma pessoa de agora com os parámetros de há um ano. O outro cambiu, nós cambiamos. Cada situação tem um balance de qualidade diferente. É sutil mas muito real.


- Compreendo. Isto é o que faz que não haja regras fixas, que não se possam estabelecer dogmas nem crenças rígidas.


- Dependemos da percepção não das crenças. Os falsos grupos têm que reafirmar-se sempre numa série de crenças e utilizam todo tipo truques conscientes e inconscientes. Tome por exemplo qualquer sociedade com as suas aparentes diversidades de opiniões, ideologias, estilos de vida. Por mais diferentes que pareçam têm uma função complementar, necessitam-se mutuamente e alimentam a sua identidade na oposição e no contraste de uns com outros.


- Mas pode ser de outro modo? Somos seres sociais depois de tudo.


- É muito certo mas também somos seres cósmicos, por exemplo. Mas ninguém terá em conta isto. Não está no programa de lavagem cerebral das diversas sociedades. Existe uma ideia implícita do que é o homem e de até onde podemos chegar e do que podemos obter, sempre dentro duns certos limites. Qualquer rapaz de doze anos em Ocidente sentirá-se hoje livre de negar a existência de Deus da maneira mais simplista que posssa imaginar, como se nega a existência dos Reis Magos. E não pense que os adultos estão melhor. Consideram essa crença, que Deus não existe, como uma obviedade. Mas se lhe falarem do Big-Bang com terminologia da mecánica quântica e complexas orientações matemáticas pensarão que isso já dá um sentido ao real. Não compreende o absurdo?


- O inglês Chesterton dizia que chamávamos explicação ao que ficava no meio entre uma cousa inexplicável e outra cousa inexplicável.


- Que bom! É isso. Somos um enigma e um mistério mas sempre haverá alguma ordem religiosa, política, filosófica, científica ou tribal que porá as cousas no seu lugar e nós resolverá todos os enigmas ou nós prometerá resolvê-los. Não é assombroso que estejamos a falar deste modo nós aqui? Não é algo irredutível a qualquer explicação, a qualquer causa?


Nesse momento alguns celulares começaram a soar. Outros amigos liam mensagens. Alguém, num quarto ao fundo, consultava o correio em Internet.


- Como pode ver- disse Fátima, não estamos alheios. Estamos implicados e ligados às situações e à nossa gente e ao mesmo tempo podemos suspender o tempo, fazer uma paragem no meio da tempestade.






(Haydar, Haydar)

2 comentários:

Esdedesear disse...

"Unha noite no muiño, unha noite non é nada, unha semaniña enteira, eso sí que é muiñada".
¿Acabó "Uma noite em Nishapur"? Lo siento, me pareció intensa y subyugante. Me ha transmitido algunas ideas inéditas que me apropiaré y empezaré a rumiar. Muchas gracias, Chiqui. Escribes genial.

José António Lozano disse...

Continuará, Conchita. Um abraço