sábado, 4 de julho de 2009

Uma noite em Nishapur II


Devo dizer que as palavras ditas pelo Aref eram muito mais suaves e amáveis do que possam parecer ao expó-las por escrito. A sua voz e o ritmo da sua fala transmitiam singeleza e uma tranquila confiança. A sensação nunca era a de alguém que tivese a necessidade de convencer-me de nada, de defender uma causa ou de pretender algum tipo de conversão. Não havia impostura alguma. Uma das bases do trabalho derviche consiste precissamente na associação das pessoas baixo uma intenção comum e o contato com pessoas de certa qualidade. Este contato é o que permite uma retroalimentação da nossa percepção, pulindo o nosso ser interno. Isto dá lugar a uma relação de caráter especular. O outro é um espelho para nós. Esta é a razão de que a primeira fase do caminho derviche resulte tão difícil para tanta gente. Longe de se encontrar com a "espiritualidade" o que encontram é a dura realidade da sua "pessoa". E isso com sorte. O mais fácil é denigrar aos outros ou ao trabalho derviche.


Desde o momento que começou a reunião do círculo (Halka) as luzes eléctricas tinham sido sustituídas por velas. Um amigo tocou o ney. Era uma evocativa e melancólica peça mas estranhamente não conduzia a um estado de tristeza ou abatimento, havia como uma épica oculta que irrumpia na história. Uma mulher recitava um poema com uma bela cadência. Notava um suave movimento nas pessoas, um leve balanceio quase imperceptível como candeias acesas, ou como o vaivém da palmeira solitária ao serem acariciada pelo vento...






A audição, o sama, prolongou-se durante uns vinte minutos e os poemas iam e vinham com paragens. Podia reconhecer o primeiro, que era de Rumi mas depois já não consegui identificar mais. Simplesmente me deixei levar pelo ambiente tentando estar receptivo e sem pretensões


Escuta a flauta de cana, como se queixa


lamentando o desterro do seu lar


"Desde que me arrancaram da minha cama de vime


As minhas notas fizeram chorar homens e mulheres


Destrui o meu peito, esforçando-me por desfogar os suspiros


e exprimir as dores súbitas e as saudades pelo fogar


Quem mora longe do seu lar


anela sempre o dia do regresso...


Mas ninguém desentranha os segredos do meu coração...


É o fogo do amor o que inspira a flauta


confindente dos amantes desgraçados...



E assim continuava o longo poema que abre o Masnavi. Mas não percebi que ao acabarem houvesse comentário algum sobre o que tinha acontecido.


Yusuf, um arquiteto que tinha feito boa parte da sua formação na França, falou-me:


- Como verá não é isto como os recitais poéticos ou musicais que se fazem no ocidente ou também aqui no oriente. Não pretendemos um efeito estético, e não o fazemos com a intenção de valorá-lo segundo um critério artístico.


Exactemente era isso o que tinha notado. A execução poética e musical era muito boa mas não deixava um pouso emocional. Confesso que havia algo raro, era como se as emoções habituais ali não funcionassem do mesmo modo. Provavelmente estava relacionado com o estado interno das pessoas que tocavam, recitavam e ouviam. Isso criava um ambiente especial. Para dizê-lo de alguma maneira: os sentimentos não se condensavam en si mesmos, fluiam à superfície como pássaros que procurassem o ar seco e a luz. Não se me ocorre outra maneira de dizê-lo. E isto é, obviamente, uma experiência bastante subjectiva mas que se complementava muito bem com a impressão pessoal de que essas gentes não te transmitiam preocupações, não eram maçadoras. Um podia estar falando com uma pessoa e aos poucos minutos ter dificuldades para recordar o seu rosto. Dirigiam-se a um com franqueza e sem pretensões.


(Continuará)

2 comentários:

Esdedesear disse...

Te escucho interesada. Gracias

Anónimo disse...

É essa impossibilidade de narrar com exactidão o que aterroriza aos ocidentais, tão afeitos à razão que furta a capacidade de expandirmos qualquer consciência. Mais uma vez, parabéns pola mente aberta e obrigado por nos transportares com o teu relato.